Sala de estar ou a orquestração do afeto infamiliar
“Os escafandristas virão explorar sua casa, seu quarto, suas coisas, sua alma, desvãos.”
Chico Buarque
Atuei como advogado de direito imobiliário durante mais de 15 anos, vivência na qual pude conhecer a realidade da casa brasileira, acompanhando, entre outros processos, a construção desse tipo de residência, na sua maioria erguidas através da necessidade e urgência de seus moradores.
As principais ocorrências nessa seara eram causas cíveis envolvendo a separação e o inventário. Tais formas de construção encontram enormes problemas quanto à sua divisão, uma vez que são realizadas sem programação documental ou planejamento arquitetônico prévio. São espaços autoconstruídos baseados, sobretudo, na necessidade versus adaptação, obedecendo a parâmetros subjetivos e não de estilo. Ademais, são construções que partem de base afetiva e empírica, construídas sobretudo a partir da firmação das relações que ali vão se estabelecendo e se multiplicando, geração após geração. Esse tipo de casa representa a maioria das casas no Brasil.
Trago essa vivência para introduzir o público na prática do artista Mano Penalva. É justamente essa classe de lar baseada na experiência empírica que interessa ao artista. Sua obra parte da relacão espacial presente nessas moradas e como são estabelecidas escalas de pertencimento, afeto e (in)familiaridade com os indivíduos, além das experiências formais com os objetos que as compõem e como esse conjunto conversa e se manifesta com o exterior ou o lado de fora.
O antropólogo, historiador, poeta, produtor cultural e ensaísta Antônio Risério tem um longo estudo sobre o assunto, chegando a classificar esse aspecto da sociedade brasileira como uma “aquarela crono-socioantropológica”. O autor nos faz transitar pelas descrições de ausência de mobiliário nos primeiros séculos coloniais (até mesmo nas salas dos senhores de engenho) para a profusão de coisas dos interiores da casa burguesa no século 19. Dos solares, passamos às casas ecléticas, neocoloniais, mission style modernistas, até os condomínios fechados, verticais, com grandes garagens e apartamentos com quarto de empregada. Esses últimos são vestígios das senzalas, tal como cortiços e favelas.
Freud também nos traz um importante ensinamento sobre a origem do que seria o conceito de infamiliar a partir do conteúdo vivo doméstico. Para Freud, o infamiliar é um confronto contraditório com o núcleo íntimo familiar, mas que não se assenta no conforto pertencível, que escapa e gera tensão: um sentimento de incerteza que gera possibilidades.
Segundo ele, há dois caminhos para encontrar exemplos de situações onde surge o sentimento do infamiliar, nos interessando aqui aquele que seria o de reunir impressões, vivências e situações que despertam em nós tal sentimento; daí, Freud conclui: “o infamiliar é uma espécie do que é estranho". O psicanalista parte da origem semântica da palavra em alemão para “infamiliar” que traz em seu núcleo, em síntese, aquilo que, íntimo, não fica em segredo.
É notório que o repertório de Mano Penalva busca despertar esse tipo de conflito entre a forma material e sua existência no espaço artístico. Suas construções partem do conhecido do ambiente interno para explicitar suas relações secretas em diversos níveis, criando inúmeras possibilidades de sua fruição e buscando seu assentamento no inconsciente, onde cada vez mais vai ao encontro de formas e múltiplas associações familiares elucidativas e complexas. Na obra do artista, nada está fechado e nada está dito cabalmente, como também tudo nos é estranhamente familiar, gerando questionamentos profundos sobre essa origem e classe de ser e estar dessas coisas no mundo. É como se Penalva encerrasse tudo, como diria Walter Benjamin, num círculo mágico que obedece a muitos outros critérios e não apenas aqueles objetivos e formais.
Essa possibilidade de vivência mágica é também um dos vieses infamiliares de sua obra: compor um aspecto mítico-antropológico do espaço humano na atualidade, sempre afetuoso, mas nem por isso menos crítico de suas raízes morais, sociais, políticas e históricas.
Me recordo aqui dos encontros com o artista que antecederam essa exposição de sua produção mais recente, onde o próprio Penalva relembrava a casa de sua avó deliciosamente ornada com elementos pessoais que lembravam aos olhos do pequeno uma orquestração dos objetos, uma sinfonia do cuidado, uma eterna referência em sua prática. Ali, paninhos, jarros, flores, abajures conviviam com cores, forros, passadeiras, tapetes, imagens e objetos decorativos, votivos e vulgares, entre outros; todas essas classes de objetos conversando entre si e com o entorno num afinamento sublime daquilo que podemos agora entender como uma espécie de afeto infamiliar, que encanta, mas é ainda mais capaz de instigar e provocar.
A própria palavra “ornar” vem representar mais que decorar, mas organizar com afeto, respeitando o “animus” de cada coisa, cada objeto, preservando sua vontade inicial e íntima em consenso com a sua existência no espaço exterior. É saber ancestral, vivo e manifesto que existe na realidade, assim como a produção de Penalva.
Interessante pensar que esse museu foi também casa do visionário Aloísio Magalhães. Portanto, ao trazer “Sala de estar” para essa instituição, o artista faz um tributo à natureza original desse espaço, criando uma exposição que embaralha as fronteiras entre a arte dita erudita e a arte popular, entre o íntimo e o público, entre o artístico e o doméstico, entre o dentro e o fora, entre a contemplação e o desejo.
Na música “Futuros Amantes”, Chico Buarque cria um delicado cenário que fala sobre a memória das coisas: na sua cidade submersa, os objetos é que contam a estória de amor ali vivida e que, no futuro, a partir destes elementos, poderá de novo ser relembrada, ou até mesmo revivida de outra forma e com outras possibilidades. (Amores serão sempre amáveis.)
No fundo, a obra de Penalva é geradora de imagens e memórias sobre a grandiosa e frágil ação de toda forma de construção humana, desde a delicadeza de seu íntimo (casa) até a força de sua presença exterior (todo), agindo numa orquestração precisa do afeto infamiliar que em tudo habita.
Wagner Nardy
Outubro, 2023