Arranjos
241. E se o paganismo, se o politeísmo construíssem igualmente um mundo em retalhos por meio de peças semelhantes às que montam o edifício do corpo? Como se o mundo não diferenciasse, na superfície aparente, da pele: paisagem-molambo vestida de pedaços. Banal, aqui, magnífica, ali. O pagus, região, província, repartição de solo ou de espaço, faz a peça do país, o elemento da paisagem: canteiro de luzandro, vinhedo, pedaço de terra, pequeno pasto, um jardim bem tratado e o pomar adjacente, a praça da aldeia, a alameda. No pagus, […] fixam-se divindades campestres. Ali repousam os deuses: no vão da sebe, à sombra do olmo. […]
A obra da paisagem, da Antiguidade perdida, dos sentidos. Recomprada subitamente, integrada pelo verbo.
Na história do pensamento ocidental, a ideia de educação através da arte foi vista como algo belo e talvez interessante, mas utópico. É uma ideia antiga: remonta a Platão, mas é possível dizer que só foi levada a cabo no século 18, especialmente em Friedrich Schiller e suas Cartas sobre a educação estética do homem. É possível dizer que houve, pela primeira vez no Ocidente, o interesse de pensadores eruditos por temas mais rebaixados da vida cotidiana, e acenou ao homem com a possibilidade de construir racionalmente o seu próprio destino, livre da tirania de governadores ou obscurantistas. Assim, assuntos como as percepções humanas, sua liberdade, sua experiência, passaram a ser investigados, no lugar dos antigos temas mais grandiosos, como a Moral ou a Verdade. Segundo os philosophes, a razão é o atributo fundamental para a emancipação do homem e algo de que todos eles são dotados.
No século 18, a estética torna-se disciplina, e a faculdade do juízo, o gosto estético, torna-se um assunto importante. Nas palavras do filósofo e historiador búlgaro Tzvetan Todorov, em O espírito das Luzes, “pela primeira vez na história, os seres humanos decidem tomar nas mãos seu destino e colocar o bem-estar da humanidade como objetivo principal de seus atos”.
244. Não procurem saber como se vê uma paisagem, componham um jardim. Compreendam o erro estético de submeter tudo a uma lei […]. Compor exige uma tensão entre local e global, vizinho e distante, narrativa e regra, a unicidade do verbo e o pluralismo não analisável dos sentidos, monoteísmo e paganismo, a autoestrada internacional e as cidadezinhas retiradas, a ciência e as literaturas. […] A filosofia às vezes exige sínteses. Visitem.
Embora o termo “gosto”, em sua dimensão estética, seja muito conhecido, citado e passível de investigação histórica, o conceito é de difícil definição; escapa à abordagem tradicional da ciência ou da história. Escapa a uma narrativa assertiva, que possa ser referenciada por documentos e provas. Mas, se “sapiência” vem de “sabor”, é preciso reconhecer que existe um vasto conhecimento produzido fora do discurso — entendido aqui numa acepção ampla, como manifestação concreta da linguagem. Curiosamente, o significado comum de sentido/estética já está dado na palavra.
244. Subitamente, vocês veem ao mesmo tempo a miniatura e o panorama.
O filósofo e historiador inglês David Hume diz, em “Do padrão do gosto”, que, além da universalidade dos juízos em geral e do gosto em particular, há ainda a possibilidade de educação dos sentidos, para além da educação letrada. Nas palavras do próprio Hume: “É natural que procuremos encontrar um padrão de gosto, uma regra capaz de conciliar as diversas opiniões dos homens […]. Há uma espécie de filosofia que impede toda esperança de sucesso nessa tentativa […]. Diz ela que há uma diferença muito grande entre o julgamento e o sentimento. O sentimento está sempre certo — porque o sentimento não tem outro referente senão ele mesmo, e é sempre real, quando alguém tem consciência dele. […] Conforme a disposição dos órgãos do corpo, o mesmo objeto pode ser doce ou amargo, e o provérbio popular afirma com muita razão que gostos não se discutem. É muito natural, e mesmo absolutamente necessário, aplicar esse axioma ao gosto mental, além do gosto corpóreo, e assim o senso comum que tão frequentemente diverge da filosofia […] ao menos num caso está de acordo em proferir idêntica decisão.”
248. O jardineiro entrega o mundo aos olhos multiplicados da paisagem. O visto, múltiplo, tem seus próprios olhares.
258. Os sentidos não enganam. O palato de um fino degustador julga mais precisamente que mil máquinas, a máquina mais fina é feita da carne de um ser vivo, a inteligência artificial fraqueja somente por falta de corpo, qualquer órgão de qualquer inseto ou serpente percebe misturas em escala molecular. O empirismo é julgado apenas cientificamente, e se nos puséssemos a julgar empiricamente o racionalismo? O questionamento que Descartes praticou não se reduz a um exercício de escola nem a uma ascese solitária. A força sempre se misturou a esse enorme movimento de história. O visível se foi, evaporou-se no invisível. Desprezamos as qualidades. Um outro invisível chega a nossos olhos. Ninguém mais viu o chamalote do mar, todo mundo procurou o distante, o profundo, e os tornou sensíveis. Pode-se dizer que apagamos o imediato, o próximo.
O movimento iluminista redescobre o valor dos sentidos, não somente cognitivos, mas no âmbido da vida, propriamente. Dada a íntima conexão entre beleza (que existe nas coisas) e sensibilidade (dos seres humanos, em seus corpos), ele é particular e naturalmente interessado em estética. É fundada a proposta da recuperação e da afirmação do valor do prazer na vida humana, e com isso, o florescimento da crítica de arte e das teorias sobre o belo.
292. Monocultura. Nada de novo sob o sol só. As fileiras intermináveis, homogêneas, expulsam ou apagam o chamalote; […] o agrônomo afasta o agrícola; umas poucas leis tomam o lugar dessas permutas pontilhistas feitas de pequenos toques. Em vez da cultura, reinam a química e a administração, o lucro e as escritas. Um panorama racional ou abstrato expulsa mil paisagens […].
A hierarquia dos gêneros pictóricos estabelecida pela academia também começa a ruir; a pintura histórica, antes considerada a mais elevada, passa a ser vista, em geral, como o modelo a ser evitado; uma natureza-morta é capaz de receber os mais altos elogios por representar assuntos eminentemente humanos, em oposição aos fatos exemplares sobre-humanos ou sobrenaturais. Há, na verdade, uma mudança de estatuto: “No século 18, a interpretação da pintura muda de natureza, descobre-se nela, não um elogio de Deus, nem mesmo do homem, mas da arte […]; a finalidade da arte é doravante encarnar a beleza, não a virtude”, diz Todorov, no livro citado. A beleza, o prazer da especulação, o exercício do gosto deixam sua marca não só no que concerne à pintura ou à crítica de arte, mas também nos mais diversos debates. Na mesma época, Montesquieu foi convidado a escrever um verbete sobre política para a Enciclopédia. Recusou-se e disse que escreveria sobre
o gosto, e este seria seu último texto, que permaneceu inconcluso e foi publicado postumamente em 1757. Em seu verbete, apresenta a ideia de espírito: “O espírito é
o gênero do qual são espécies a engenhosidade, o bom senso, o discernimento, o senso de medida, o talento,
o gosto. Ter espírito consiste em ter as faculdades bem constituídas, relativamente às coisas às quais se aplica. Se essa coisa for extremamente particular, seu nome é talento; se está mais ligada a um certo prazer delicado das pessoas comuns, seu nome é gosto”.
292. Mas o real ultrapassa o racional. Por acasos residuais, esse algo sobre o qual não tenho ou nunca poderei ter informação, o ignoto, o excesso, o ruído, o grande número e a diferença.
Em conformidade com a ideia generosa de universalidade, todos os seres humanos são, para o Montesquieu, capazes de cultivar seu espírito crítico. Assim, as “pessoas delicadas” podem sempre educar-se intelectual e sensorialmente; a noção de gosto carrega em si conotações práticas e metafísicas — uma metafísica rebaixada, ligada ao prazer; um prazer comum, um arranjo de flores recém-colhidas.
A palavra, o racional, talvez tenha impregnado a ideia de “espírito crítico” com algo de pesado e inatingível, implicitamente reservado a quem possui uma educação formal ou acadêmica, em geral as mesmas que pertencem às classes mais altas. Do gosto como sensação, surgiu um duplo, deturpado, e a ele opôs-se a ideia de mau gosto, kitsch, anti-refinamento.
292. A existência, afastamento do equilíbrio, refere-se às circunstâncias. A circunstância forma conjunto, sem balanço nem cálculo possível, das próprias existências, dos desvios […].
293. A paisagem […] torna-se um modelo lógico, e a lógica, inversamente, redesenha a paisagem.
Mariana Leme
Texto de Mariana Leme com recortes de “Visita”, de Michel Serres, em Os cinco sentidos, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001. As indicações de páginas estão no início de cada parágrafo. Imagem de Sérgio Pinzón, sobre fotografias retiradas da internet. Tiragem de 1000 exemplares.