Crepom, ou aprender da matéria
Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
— João Cabral de Melo Neto
Foi com sua avó que Mano Penalva aprendeu a fazer flores de papel crepom: uma educação pelo afeto e pelas mãos; para aprender do papel. Crepom é uma homenagem aos saberes que atravessam gerações e que se aprende com o corpo, e foi concebida para ocupar o espaço que conecta os jardins da Casa de Cultura do Parque. A instalação é composta por uma videoperformance, um canal sonoro e dois grandes murais — que lembram lousas — com babados de crepom branco.
O papel é assim chamado por causa da rugosidade que lhe dá estrutura, e a sinuosidade do trabalho nos convida a um olhar demorado, que vagueia pelas curvas, estabelecendo uma nova temporalidade ao lugar que seria uma simples passagem. A fatura, tanto do papel crespo quanto do babados, faz com que nenhuma volta seja exatamente igual a outra, e a obra também se modifica ao longo do dia, a depender das luzes e do vento que nela incidem.
Penalva remete à educação convencional, evocando o lugar de autoridade do professor (a lousa) e a organização normativa do alfabeto (o som), para em seguida duvidar dela, sugerindo que a transmissão de conhecimento se dá também pela matéria. O inusitado das lousas, que são decorativas como um bolo, e da voz grave que faz um inventário de flores de A a Z levanta a questão mais ampla de uma cultura que separa intelecto e corpo, arte e artesanato, masculino e feminino, escrita e oralidade — estabelecendo hierarquias tão arbitrárias quanto enviesadas.
Em 1550, Giorgio Vasari publicou o livro que é considerado o fundador da História da Arte, As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos, conhecido no Brasil como Vidas dos artistas. Além de argumentar que pinturas, esculturas e projetos arquitetônicos são obras de indivíduos excepcionais, Vasari afirma que elas transcendem as próprias mãos dos artistas, “por mais excelentes que estas fossem” — como é o caso, segundo ele, de Leonardo da Vinci. Já Michelangelo Buonarroti seria o criador de “frutos mais divinos que humanos”, sendo ele mesmo um “artista tão divino”. Ora, mas como seria possível fazer pintura e talhar o mármore, tão duro, senão com as mãos?
O livro das vidas dos artistas é contemporâneo ao início do empreendimento colonial moderno, que reorganizaria o mundo a partir de uma lógica extrativista de tantas outras vidas, tornadas a partir de então descartáveis como “recursos”. Paulatinamente, o pensamento ocidental produziria uma cisão dramática entre natureza e cultura, como se a primeira fosse meramente contingente, subordinada à intelectualidade da segunda. Não por acaso, foi estabelecido que a pintura de natureza-morta — com representações frequentes de flores — seria o mais baixo dos gêneros pictóricos.
Se levarmos em consideração os cinco séculos da história arte branca-ocidental, não há nada de ordinário nas flores de crepom de Mano Penalva: trata-se de resgatar uma educação pela materialidade — e pela beleza — das coisas, numa tentativa de reparar a fratura entre “arte” e “artesanato”; entre as vidas de artistas e as vidas-tornadas-descartáveis, incluindo a das plantas.
Em fevereiro de 2023, no auge da catástrofe humanitária provocada em território Yanomami, sobretudo pelo garimpo extrativista, Dário Kopenawa Yanomami e Estêvão Benfica Senra escreveram que era preciso “falar sobre a beleza”. De fato, “Um povo cujas crianças podem nomear mais de duzentos tipos de flores durante uma brincadeira é um tesouro. E é desse tipo de tesouro de que o Brasil e a humanidade precisam.”
As flores que as crianças Yanomami conhecem são pelo menos o dobro daquelas evocadas por Penalva, que parece chamar a atenção — inclusive pelo efeito do eco — para nossa ignorância letrada, isto é, de todos aqueles que foram educados não pela pedra, mas pela primazia do intelecto e pelo desejo de conhecer, descrever e dominar as vidas, sinuosas como os babados. É como se Crepom materializasse o fantasma branco que ronda a escola, a arte e outras instituições ocidentais que tendem a ficar ocultas, transparentes como norma “divina”. Uma educação pela pedra, ou pelas flores, pode significar uma bem-vinda contaminação cultural, para que possamos aprender da matéria, e reconhecer que também somos feitos dela.
Mariana Leme, 2024
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Giorgio Vasari. Vidas dos artistas. São Paulo: Martins Fontes, 2011, tradução de Ivone Castilho Benedetti, pp. 444, 714 e 727.
Dário Kopenawa Yanomami e Estêvão Benfica Senra. “Precisamos falar sobre a beleza dos yanomamis”. Folha de S.Paulo, 8/2/2023, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/desigualdades/2023/02/precisamos-falar-sobre-a-beleza-dos-yanomamis.shtml. Acesso em 17/6/2024.