(Duas pessoas caminhando na rua. Final de tarde.)
— Essa coisa da passagem me faz pensar nesse dito... como é mesmo?— se distrai com buzina de caminhão. — Que... Como é? Os gregos falavam disso. Dessa fronteira. Que...— olha rapidamente antes de atravessar. — Que o “limite não é onde uma coisa termina mas, (...) de onde alguma coisa dá início à sua essência”, sabe?
— Sim. Porque esse algo está diante de mim, de você, e somente consideramos o final desse algo, o seu término, quando nos damos a volta e olhamos o que estamos deixando para trás. Vamos pela sombra? — indicando caminho margeado por árvores.
— Sim, sim.
— E, claro que isso funciona fisicamente. Sabemos que o passado está na nossa frente segundo a visão dos povos originários andinos, não é?
— Claro. Ao aproximar-nos do marco da porta, desse umbral, vemos o começo de algo novo e fisicamente, no decorrer desse movimento, ao passar o marco da porta, deixamos para trás outro algo.
— Exatamente. Ah! Muito melhor. Mais fresco, não é?
— Muito mais agradável sim.
— Então, voltando, bom... para aquele que caminha olhando adiante a fronteira não é o ponto onde algo termina. Bem, pode ser, agora que falei em voz alta me dei conta disso — risos.
— Você diz isso porque vemos o limite da porta? — estendendo os braços.
— Claro. O final de algo está ali diante de nós delimitado por essa abertura, por essa passagem. Mas...
— Na verdade o seu campo de visão vê mais, ou seja, proporcionalmente existe mais massa ou substância do começo de outra coisa que comparativamente ao que você está deixando para trás.
— Sim, justamente. Vejo mais dessa outra coisa. Mas, fiquei pensando sobre essa zona intermediária.
— Que zona intermediária?
— O alpendre, por exemplo.
— Essa espécie de varanda coberta?
— Sim.
— O que é que te faz pensar?
— Me faz pensar nesse lugar como... qual a função desse lugar, sabe? Me faz pensar sobre a funcionalidade
deste espaço.
— Bom, é um lugar utilizado pelas pessoas para fumar, por exemplo. Inclusive, não era o alpendre o “porto seguro” para a personagem joyceana do tio Charles?
— Sim, é certo.
— Ele aliás não o utilizava como “câmara de ressonância”, lembra?
— Sim, sim. Claro. Era um lugar que ele utilizava para relaxar, cantar, fumar.
— Além do mais, as personagens faulknerianas Vernon e Anse sentam-se em um “alpendre dos fundos”, ou seja, estamos falando de algo que pode estar em diferentes lugares da casa.
— Sem dúvida. Existem aqueles alpendres que estão localizados na parte dianteira, outros na parte traseira... — E nesses distintos alpendres, não somente se relaxava ou se entretinha. Você não lembra onde a jovem personagem Vardaman Bundren chora a perda da mãe? Ou seja, também é um lugar de lamurio ou de qualquer espécie de sentimento que queiramos expressar longe do olhar alheio.
— Claro. A personagem corre em direção oposta à família e se prostra a chorar no canto do alpendre.
— É isso.
— Sim, é uma zona de respiro. Para atenuar as emoções. De certa maneira também serve para aclimatar o corpo antes de entrar ou sair.
— Justamente. O corpo se habitua, se aclimata, se acostuma, durante o período que se encontra aí. E se acostuma a um conjunto de novas situações e estados atmosféricos, psíquicos, biológicos, climáticos que lhe vão acometer no momento em que adentre esse novo espaço.
— Você me fez pensar nesse alpendre como lugar de deslize para fora do estado atual. Porque é um constante entrar e sair físico e emocional. Uma zona que propulsiona o corpo para além do atual estado de espírito. Porque claramente estamos falando de um lugar de trânsito de um corpo e do que existe afetivo nele.
— Precisamente.
— Lugar que promove a exploração ou o resguardo.
— Com certeza. É um “entre-lugar” por excelência. Uma passagem que pode... vamos dizer assim, produzir algo antagônico ou conflituoso ou relaxante ou apaziguador...
— Sim. É esse lugar que impede que você se coloque assim de uma vez na vida quando vindo da rua para casa ou da casa para a rua.
— Claro. E, aproveitando que você falou sobre o que existe de afetivo nele, se pode pensar também de como afetaremos os corpos que estarão nos espaços que estamos a ponto de entrar. Quer dizer, de como, por exemplo, chegamos em casa. Com que energia chegamos? Ou melhor, o que trazemos da rua ao chegar em casa? E, vice- versa, qual é a energia que a gente leva para a rua ao sair de casa?
— Me dá a sensação de um aspecto ritualístico nesse entrar e sair porque o ritual está associado a um lugar de passagem e pensar nesse ritual associado à casa me parece curioso.
— Sim, me lembra a Macabéa, de quando ela esquentava o corpo, “esfregando as mãos uma na outra para ter coragem” para passar a um novo estado de espírito, com o qual ela saia de onde estava para enfrentar uma “cidade toda feita contra ela”.
— E, esse ritual, marcado por uma espécie de clima espiritual, para conseguir “um oco de alma” me faz pensar no alpendre como zona climatológica, onde passamos da sombra privada à claridade social ou vice-versa podendo residir por momentos aí, nesse oco de estrutura para agarrar forças, talvez chorar ou fumar prazerosamente antes de entrar.
— Mas, se refletirmos sobre a funcionalidade do alpendre enquanto espaço para situar-se, para encontrar-se... se pensarmos nele como fronteira... que um corpo nessa fronteira tem uma visão estratégica de ambos lados...
— Claro. É um ponto de vista. Antigamente, dali se via.
— Definitivamente. É um ponto estratégico. Que pode ser visto inclusive como ponto estratégico de controle: você vê o que está dentro e fora simultaneamente. Na época dos bandeirantes, por exemplo, do alpendre de suas casas eles conseguiam ver toda a fazenda, todo o movimento: a secagem do café e assim por diante.
— Claro. Se esse era o lugar de perceber, de apreender o todo, então tem claramente um cunho militar. Não nos esqueçamos que “o campo de batalha é um campo de percepção, a máquina de guerra é para o polemarco um instrumento de representação comparável ao pincel e à palheta do pintor”. Afinal tudo isso corresponde ao ato de observar à distância, de fixar uma mirada e orientar a pontaria para algo.
— Bom, visto deste ponto de vista, realmente o clima ganha uma tonalidade muito específica. Porque ao pensar nos alpendres de casas bandeirantes penso na sociedade e economia paulista sendo formada sob essa mirada, essa pontaria. E, em como esse ponto de vista explorou e destruiu populações indígenas trazidas de outras regiões.
— Ah, com certeza. Tenha em mente também que esses bandeirantes também estavam em constante conflito com sua interioridade-exterioridade individual já que eles “eram em geral, filhos de europeu e índia”.
— Sabe que quando você traz essa questão para o corpo, para o nível epidérmico, é difícil não recorrer a uma “metaforacidade das casas da memória racial”. Ou seja, pensar nos vários níveis em que se desdobra essa estrutura- alpendre: do arquitetónico ao corporal. Como quando pensamos no trabalho da Carolina Maria de Jesus como um modo de “ver, e escrever, a cidade para além da ‘perspectiva do alpendre’.”
— Ah, sim. O desenlace da expressão do Freyre sobre o canavial. “Com um pé na cozinha e um olhar guloso sobre os prazeres afro-brasileiros, Freyre viu a senzala do ponto de vista da casa grande, mirou o canavial da perspectiva do alpendre.”
— Mas será que não é também uma referência à hibridez?
— O que exatamente?
— Me refiro ao fato de que o alpendre é uma espécie de lugar onde duas categorias se misturam, ou seja, a casa e o mundo estão ali. E, “nesse deslocamento, as fronteiras entre casa e mundo se confundem e, estranhamente, o privado e o público tornam-se parte um do outro, forçando sobre nós uma visão que é tão dividida quanta desnorteadora”.
— Tem sentido. Sim. Fico pensando no inserto, no adentrado, no encaixado que estão estes alpendres nas casas bandeiristas. É realmente um apêndice interno. E levar esse apêndice para dentro, como um processo de escavação, de cavidade para construir esse lugar de passagem o converte em ainda mais necessário para o bem estar desta moradia. E se ele era um ponto estratégico de controle então era um ponto indispensável para proteger a morada contra o exterior, contra o lado selvagem deste exterior e daqueles selvagens (ingrediente original e fundamental da cultura europeia) que ali habitavam.
— Certo. Agora entremos — abrindo a porta, cedendo a passagem.
(Entram em espaço diáfano onde se veem obras nas paredes brancas.)
— Ah, agora sim entendo. Nossa. Essas cores, essa paleta mais amarronzada, de ocres, beges... Esses tons de madeira me fazem pensar na epiderme — caminhando ao longo do espaço.
— Acho que não somente à pele, mas a tudo que seja natural é o que Penalva está fazendo aqui.
— Claro, daí tem sentido o que a gente estava falando.
— Aquela — apontando para uma das obras — me lembra muito a bandeira verde e vermelha do David Hammons.
— Sim. Totalmente. É uma mistura de Hammons com Albers. Essa é a ideia?
— Bom. A ideia primeva não foi precisamente essa. A primeira ideia era realizar círculos, mas por uma questão estética a ideia não foi levada a cabo.
— E, por quê?
— Digamos que isso foi ditado pela indústria. De igual modo, os tons são determinados pela indústria artesanal. Geralmente são as cores trabalhadas por famílias que fazem essas bolinhas no sul (Santa Catarina e Paraná) e no nordeste (Piauí) do país.
— E, o que ele fez então?
— Bom, o trabalho do Penalva é de composição a partir do que é oferecido, nesse caso, pela indústria.
— É muito pictórico.
— Sim. Principalmente seus aspectos compositivos. Ou seja, aqui ele começou a sobrepor tamanhos de quadrados diferentes caindo de fato em uma espécie de pintura expandida, não é?
— Sem dúvida.
— A composição destes quadrados, a ordem deles, surge a partir desse pensamento, dessa reflexão sobre o que trazemos ao longo desse lugar de passagem. Ou seja, da casa para a rua e da rua para a casa. E, para sentir isso, a obra exige que você de certa forma percorra, caminhe ao redor dela, você vê? — observando movimento alheio.
— Sim, sim. Parece que eles têm uma certa vida. Parece que os quadrados cobram vida.
— E isso se dá devido à disposição e dimensão de cada um deles. Alguns partem de quadrados menores no sentido aos maiores e vice-versa.
— Claro. Nossa. A minha impressão, principalmente porque falamos das casas bandeiristas, é a da igreja, que sempre existia nessas casas. E menciono isso porque me lembrei dos vitrais, da entrada de luz, desse espaço que é atravessado por essas frestas, por esses buracos. Se bem que nessas casas eram usadas treliças de madeira como na Capela de Nossa Senhora de Fátima em Brasília.
— Sim, tem razão. E, tem uma questão do volume. Cada um deles é formado por 3 camadas — assinalando o flanco esquerdo da obra.
— Sim, notei. E acho que é essa figura geométrica, o quadrado, que me faz pensar tanto na história da arte. Digo isso pela quantidade de referências aos quadrados em pinturas.
— Totalmente. E, isso da pintura, é mas proeminente pela tríade de camadas e pela composição.
— E também pela cor, não?
— Também.
— Nossa... é impressionante esse efeito multiplicador, essa fatura ótica, o que esses quadrados produzem, pela maneira que estão construídos a partir da sobreposição de quadrados de dimensões distintas, seguindo uma escala, uma construção escalonável, ora aumentando ora diminuindo. Cria no final das contas esse efeito de vitral. Me fazem pensar também na janela, nessa abertura que aparece na parede, sabe? Elas desprendem uma luminosidade curiosa.
— Acho que esse ponto lumínico a que você se refere se conecta ao aspecto energético da obra. Penalva acredita muito em uma densa concreção energética, nessas coisas que se juntam sem motivo aparente, formando feições geológicas afetivas não estáveis. Ou seja, a identidade dessas obras vão sendo alteradas constantemente pela interação com outras pessoas que, por sua parte, vão deixando intangivelmente afetos. Algo parecido a ideia do Kula. Porque existe algo participativo. Parece que a obra te interpela. Ela te afeta. E, tudo isso que estou falando é de ordem simbólica. Porque na minha opinião o trabalho dele é sobre esse receber, e esse acrescentar alguma coisa de ordem simbólica desses objetos quotidianos, que parecem passar despercebidos.
— Sabe que a gente falou de muita coisa, mas não pensou no fato de que isso ao fim e ao cabo são cortinas, que tiveram em seu momento um valor utilitário.
— Justamente. E claro que tem o uso desse objeto utilitário em um contexto novo. E por isso ocorre, como Penalva gosta de dizer, um “deslocamento” ou “queda da normalidade da coisa”, mas no fundo no fundo não tem nenhuma quebra, tem somente um “efeito lupa”. A meu ver ele tem uma inclinação para olhar o comportamento de uma matéria associado ao seu uso, a sua utilidade ou ao seu comportamento. Da maneira como eles existem no mundo.
— Isso tem a ver com o que o Albers distinguia como “factual” (o que não passa por mudanças) e “actual” (algo não fixo, que se altera com o tempo).
— É interessante que a gente começou a conversa falando sobre a percepção da fronteira, da passagem por uma fronteira e ao falar do Albers sinto que estamos falando da mesma coisa porque essas fronteiras de cor me fazem pensar justamente sobre essa passagem de um campo ao outro.
— Sim e acho também que existe esse caráter de projeto para a vida do outro. O “Albers via a arte como um projeto epistemológico, como uma forma de conhecimento; para ele, a melhor “visão” que a percepção atenta provoca pode de fato aumentar a consciência sobre os significados atribuídos rotineiramente e, dessa forma, pode encorajar as pessoas a transformar seus padrões habituais de compreensão”.
— Sinto que de certa maneira esse alpendre é como um clímax.
— Como um clímax?
— Uma espécie de lugar culminante, sabe? Daí, entramos em outro espaço e voltamos a culminar nele novamente.
— Se é assim então não seria o lugar de maior intensidade, mas sim seu ponto final.
Tiago de Abreu Pinto.
Tiago de Abreu Pinto (born 1984, Salvador, Brazil) is an independent curator, Ph.D. in Art History from Complutense University of Madrid (Madrid, Spain), based between Madrid and São Paulo, whose practice is shaped by an ongoing dialogue with literature and philosophy. Previously gallery manager and director at NoguerasBlanchard, he is also the co-founder of the art magazine Revista Claves de Arte (Madrid), focused on contemporary art galleries. Nominated Special Correspondent of The Future Generation Art Prize Pinchuk Foundation (Ukraine), he is the recipient of the Gwangju Art Biennale scholarship (2012) and Art Curatorial Award Se Busca Comisario (2014) awarded by the Spanish Government. Tiago has curated exhibitions in museums, commercial galleries, biennials etc. in Spain, France, Morocco, Netherlands and Brazil.