Dois pra lá, dois pra cá
Uma das possibilidades de revisão da história social do Brasil apresenta- se através de uma história do movimento. Polivalente, esse movimento pode acontecer de inúmeros modos: migrações populacionais, variações de maré, dinâmicas comerciais e de troca e, próprio ao corpo cultural, a dança. Apesar das variantes sedutoras, opto por manter esta investigação historicamente próxima ao “movimento”, pela insubordinação que o próprio fenômeno carrega consigo em relação ao desapego disciplinar e à liberdade de deslocamento no pensamento.
Em Dois pra lá, dois pra cá, exposição individual de Mano Penalva em Curitiba, é a tentação do olho que comanda o deslocamento, que ativamente distorce a imagem fruída ao passo que o espectador se move no espaço. As salas expositivas, idealmente neutras, tornam-se um diagrama de coreografias planejadas pelo artista. Nas obras da série Ventana, produzidas com ripas de madeira multicoloridas, é como se cada canto assobiasse, chamando para mais perto, em disputa com os chamarizes em si mesmo. Os trabalhos demonstram uma repulsa à frontalidade, a um ponto de vista único, hermético e pré-fixado, questão amplamente discutida pela prática escultórica contemporânea. Ambíguo, os objetos tridimensionais de Penalva se apresentam camuflados de pinturas postos à parede; sem a intenção do engano, mas com o truque do fascínio. A apontar para uma crise de classificação em um mundo de objetos e nomes cambiantes, o trabalho engendra compreensões intervalares em sua própria natureza.
Penalva incentiva uma observação livre da forma, pautada pelos apetites sensoriais a serem saciados através do movimento em diversos ângulos, em mudanças completas de cor e composição em determinadas posições. Com esses trabalhos, portanto, o artista propõe ao espectador uma insinuação de dança defronte às obras: dois pra lá, dois pra cá. Tal movimento pendular, como as contas de um ábaco – ou como seus Alpendres que balançam ao vento –, joga pontos de referência a primorosos sistemas estéticos de origem popular, assim como sobrescreve um incontornável legado da arte cinética, sobretudo do modernismo latino-americano. Esse resíduo histórico que acompanha a produção de Penalva é análogo ao ruído visual causado pelos trabalhos apresentados, onde fenômenos ópticos – como o moiré – se intensificam e se acumulam na retina de quem absorve os trabalhos, impregnando o próximo trabalho com o zumbido do anterior.
Desse modo, Penalva reverencia a sofisticação de vocabulários visuais igualmente populares – e, por consequência, suas epistemologias e relações sociais –, como na composição de elementos da arquitetura vernacular, na composição de bancas de feira com lonas e caixas de madeira, na diagramação de cartazes com letras pintadas manualmente.
As ventanas guardam semelhanças com os aparatos arquitetônicos postos em vãos de janelas e portas que permitem o fluxo de ar ao mesmo tempo que bloqueiam a incidência solar. Tal solução formal, criada em países com climas desafiadoramente quentes, apresenta diversidade caleidoscópica de formas e combinações de padrões geométricos – como em cobogós, muxarabis, venezianas e persianas. Pedindo o inverso do que o objeto que as geram propõe, as Ventanas de Penalva pedem ao espectador que as descortinem, que as esguelhem, que as desvelem em soslaio.
Essa geometria dinâmica encontra diálogos bem humorados: em Beijo, por exemplo, a parábola formada pelo tenso peso da fiada de contas encontra, em uma carícia tangente, o arco côncavo da forma circular pintada em acrílica sobre madeira. Essa espécie de colar de miçangas, além de sugerir conexões religiosas e espirituais densamente ocorrentes nas visualidades populares, fazem cócegas no conceito do ornamento, presença temida pelo modernismo minimalista. Em Beleba, esferas imantadas que sugerem divertidas bolinhas de gude, comuns em brincadeiras e rua, também simbolizam campos de troca, de conquistas e de estratégias1. Visualmente, inserem pontos visuais marcantes em meio ao ritmo vertical, como semibreves em uma partitura rotacionada.
Ao intitular a mostra como Dois pra lá, dois pra cá, o artista desvia o movimento para a dança, e alguns pilares fulcrais bailam no horizonte: a relação intrínseca com a música; a corporificação de expressões culturais das mais diversas, miscigenadas, transpostas e reconfiguradas; a dimensão afetiva; e a efemeridade da dança, que só acontece em determinado momento e, quando se repete, é sempre nova, embora repita uma tradição. A dança é, portanto, inexata em suas recorrências, tenha o mesmo princípio medidor, uma matriz de instruções comum.
Quadris, ombros, pés e mãos obedecem a cantos inteligíveis que ativam corpos sensíveis, cuja inteligência corporal é mestra. Há, por certas matrizes, uma tentativa de esquematização dos movimentos da dança, de modo a controlá-lo, reproduzi-lo em intentos disciplinares, geométricos, científicos. Ironizar a tentativa de ensinar alguém a ter molejo foi uma das intenções centrais de Andy Warhol na série Dance Diagram (1961- 1962), onde a sinuosidade e espontaneidade dos movimentos dão lugar a linhas duras e vetoriais que instruem sobre o movimento dos pés2. Nas ocasiões em que trabalhos dessa série eram expostos – em lugares onde ver pessoas dançando causa estranheza, como museus e galerias de arte –, eram raras as vezes em que os observadores não tentavam replicar as instruções defronte às obras.
Em Dois pra lá, dois pra cá, Mano Penalva propõe uma ativação similar: em uma sala com paredes em tom mais quente, ecoa um bolero que incentiva os visitantes à dança. As duas caixas de som sobre tripés, defronte aos grandes Alpendres que lavam as paredes do teto ao chão, sugerem dois corpos que, em par, somam-se à dança. A instalação sonora Bolero para o silêncio – composta por Penalva e pelo produtor musical Meno Del Picchia –, além de atentar para os hibridismos culturais da América Latina, suas influências hispânicas e resistências originárias e diaspóricas, disserta sobre a importância do intervalo: a pausa que intercala os passos é tão importante quantos os elementos cheios. Maestro é quem domina o tempo, determina o ritmo e dispõe as frestas na completude. Cercado de obras que privilegiam a apreensão visual em detrimento a outros sentidos, Bolero para o silêncio amalgama-se com o observador em um processo de ignição do corpo através da audição.
Nota-se, portanto, uma inexatidão nas práticas da dança: embora haja um decoro que as rejam, cada uma acontece de modo específico, dentro de um parâmetro convencionado. Essa matemática orgulhosamente inexata, descompassada pela generosidade, tende sempre ao transbordamento, a um pouco a mais: surge, assim, a obra Um tanto e meio. Penalva questiona se esse sistema de medida pautado pela partilha não se faz mais pertinente nas relações humanas do que a escala de unidade métrica, onde, em frieza tal, o que determina o que é medido é o comprimento de raios de luz no vácuo em um intervalo mentalmente incompreensível.
Embora as medidas representem uma lata de um litro e uma de meio litro – empírica, sábia e precariamente apropriadas da produção industrial, ao reutilizarem latas metálicas de óleo de cozinha como recipiente para medida de grãos e farinhas em feiras públicas –, Um tanto e meio indaga acerca da arbitrariedade dessas convenções: não se sabe quanto faz um tanto ser um tanto, muito menos meio. A obra propõe uma alternância, sempre dinâmica: de um lado, o cheio intransponível, como esculturas maciças de Iran do Espirito Santo que não servem para medida alguma; ou o vazio presente, como nas moedas sem valor de Cildo Meireles. Os objetos em si nada valem, mas pautam o valor das coisas que medem e trocam.
Existem virtualmente, em potência. Com conteúdo mutável, podendo ser preenchidas com matérias dos mais diversos valores, Um tanto e meio enfatiza a dinâmica da troca. Além disso, indaga se propor possibilidades centradas na generosidade nas dinâmicas capitalistas não são encenações utópicas.
Complica-se ainda mais quanto as etapas produtivas são subvertidas pelo paulatino abandono da reutilização das latas industriais, passando a produzir artesanalmente – e vender – novos utensílios medidores com volumes aproximados. Assim, reitera-se um deslocamento central: um instrumento de medida passa a ser de representação, em uma ciranda cruzada entre imagem, objeto e significado. Ao mesmo tempo que se referem a uma prática dada, Um tanto e meio independe dos objetos que a constituem, posto que (in)citam, em senso estrito, os movimentos feitos por outras latas que não aquelas. Incentivando os mecanismos imaginativos, Penalva sugere a possibilidade sonora dessas latas quando cheias, como chocalhos que cumprem a percussão do bolero, a soar o ritmo do cotidiano, o barulho das feiras, o som do baile.
Notas
1 Vale aproximar à discussão entre linguagem, jogo e política, proposta por Waltércio Caldas na exposição A natureza dos jogos (MASP, 1975), sobretudo no trabalho A origem do futuro (1972).
2 Warhol satirizava um compêndio estadunidense publicado na década de 1950 que prometia instruções caseiras para aprender a dançar de forma fácil, como nos livros Fox Trot Made Easy [Fox Trot facilitado], Tango Made Easy [Tango facilitado], e The Easy Way to Good Dancing [O jeito fácil para dançar bem], publicados pela Dance Guild, Inc.
Two steps forward, two steps back
One of the possibilities for revising Brazil’s social history presents itself through a history of movement. Versatile, this movement can occur in countless ways: population migrations, tidal variations, commercial dynamics and exchanges, and, inherent to cultural embodiment, dance. Despite the seductive variants, I choose to keep this investigation historically close to “movement,” due to the insubordination that the phenomenon itself carries regarding disciplinary detachment and freedom of thought.
In Two steps forward, two steps back, Mano Penalva’s solo exhibition in Curitiba, it is the temptation of the eye that commands the displacement, actively distorting the image enjoyed as the spectator moves through the space. The exhibition rooms, ideally neutral, become a diagram of choreographies planned by the artist. In the works of the Ventana series, with multicolored wooden slats, it’s as if each corner whistles, calling closer, in competition with the lures themselves. The works demonstrate a repulsion towards frontality, towards a singular, hermetic, and pre-fixed point of view, a question widely discussed in contemporary sculptural practice. Ambiguous, Penalva’s three-dimensional objects present themselves camouflaged as paintings placed on the wall; without the intention of deceit, but with the allure of trickery. Pointing towards a crisis of classification in a world of changing objects and names, the work engenders interval understandings in its own nature.
Penalva encourages a free observation of form, guided by sensory appetites to be satisfied through movement at various angles, in complete changes of color and composition in certain positions. With these works, therefore, the artist suggests to the spectator an insinuation of dance facing the artworks: two steps forward, two steps back. This pendular movement, like the beads of an abacus – or like his Alpendres swaying in the wind – throws reference points to the elaborate aesthetic systems of popular origin, as well as overwrites an unavoidable legacy of kinetic art, especially from Latin American modernism. This historical residue accompanying Penalva’s production is analogous to the visual noise caused by the presented works, where optical phenomena – such as moiré patterns – intensify and accumulate in the retina of those who absorb the works, impregnating the next work with the buzz of the previous.
In this way, Penalva reveres the sophistication of equally popular visual vocabularies – and, consequently, their epistemologies and social relations – such as the composition of elements from vernacular architecture, the arrangement of market stalls with canvas and wooden boxes, the layout of posters with hand-painted letters.
The Ventanas bear similarities to the architectural apparatuses placed in window and door openings that allow air flow while blocking solar incidence. Such formal solutions, created in countries with challenging hot climates, present a kaleidoscopic diversity of shapes and combinations of geometric patterns – such as in cobogós, muxarabis, blinds, and shutters. Asking for the opposite of what the object that generates them proposes, Penalva’s Ventanas ask the spectator to unveil them, to leer at them, to unveil them sideways.
This dynamic geometry finds humorous dialogues: in Beijo (Kiss), for example, the parabola formed by the tense weight of the string of beads meets, in a tangential caress, the concave arc of the circular shape painted in acrylic on wood. This sort of bead necklace, besides suggesting religious and spiritual connections densely occurring in popular visualities, tickles the concept of ornament, a presence feared by minimalist modernism. In Beleba, magnetized spheres that suggest playful marbles, common in games and on the street, also symbolize fields of exchange, achievements, and strategies1. Visually, they insert striking visual points amidst the vertical rhythm, like whole notes in a rotated score.
By titling the exhibition Two steps forward, two steps back, the artist shifts the movement towards dance, and some pivotal pillars dance on the horizon: the intrinsic relationship with music; the embodiment of cultural expressions of the most diverse, mixed, transposed, and reconfigured; the affective dimension; and the ephemerality of dance, which only happens at a certain moment and, when repeated, is always new, although it repeats a tradition. Dance is, therefore, inaccurate in its recurrences, having the same measuring principle, a matrix of common instructions.
Hips, shoulders, feet, and hands obey intelligible tunes that activate sensitive bodies, whose bodily intelligence is masterful. Through certain matrices, there is an attempt to schematize dance movements, in order to control them, reproduce them in disciplinary, geometric, scientific intents. Ironizing the attempt to teach someone to have grace was one of Andy Warhol’s central intentions in the Dance Diagram series (1961-1962), where the sinuosity and spontaneity of the movements give way to hard and vectorial lines that instruct about foot movement2. On occasions when works from this series were exhibited – in places where seeing people dancing causes strangeness, such as museums and art galleries – it was rare for observers not to try to replicate the instructions in front of the works.
In Two steps forward, two steps back, Mano Penalva proposes a similar activation: in a room with warmer-toned walls, a bolero echoes, encouraging visitors to dance. The two loudspeakers on tripods, facing the large Alpendres that wash the walls from floor to ceiling, suggest two bodies that, in pairs, join the dance. The sound installation Bolero para o silêncio (Bolero for silence) – composed by the artist and the musical productor Meno Del Picchia –, in addition to addressing the cultural hybridities of Latin America, its Hispanic influences, and original and diasporic resistances, discusses the importance of the interval: the pause that intercalates the steps is as important as the full elements. The conductor is the one who masters time, determines the rhythm, and arranges the gaps in completeness. Surrounded by works that privilege visual apprehension over other senses, Bolero para o silêncio amalgamates with the observer in a process of body ignition through hearing.
Therefore, there is an inaccuracy in dance practices: although there is a decorum that governs them, each one happens in a specific way, within a conventional parameter. This proudly inaccurate mathematics, unbalanced by generosity, always tends towards overflow, to a little more: thus emerges the work Um tanto e meio (A Bit and a Half). Penalva questions whether this measurement system guided by sharing is more pertinent in human relationships than the metric unit scale, where, in such coldness, what determines what is measured is the length of rays of light in a mentally incomprehensible interval.
Although the measurements represent a one-liter and a half-liter can – empirically, wisely, and precariously appropriated from industrial production, by reusing metal cooking oil cans as containers for measuring grains and flours in public markets – Um tanto e meio reiterates the arbitrariness of these conventions: it is not known how much a bit is, much less half. The work proposes an alternation, always dynamic: on one side, the impenetrable fullness, like the massive sculptures of Iran do Espirito Santo that serve no measurement purpose; or the present emptiness, as in Cildo Meireles’s worthless coins. The objects themselves are worthless, but they dictate the value of the things they measure and exchange.
They exist virtually, in potentiality. With changeable content, capable of being filled with materials of the most diverse values, Um tanto e meio emphasizes the dynamics of exchange. Additionally, it questions whether proposing possibilities centered on generosity in capitalist dynamics are not utopian enactments.
It becomes even more complicated when production stages are subverted by the gradual abandonment of reusing industrial cans, starting to produce – and sell – new measuring utensils with approximate volumes by hand. Thus, a central displacement is reiterated: a measuring object becomes one of representation, in a crossed carousel between image, object, and meaning. While referring to a given practice, Um tanto e meio is independent of the objects that constitute it, since it (in)cites, strictly speaking, the movements made by other cans than those. Encouraging imaginative mechanisms, Penalva suggests the sound possibility of these cans when full, like rattles that fulfill the percussion of the bolero, sounding the rhythm of daily life, the noise of markets, the sound of the dance.
Notes
1 It is worth approaching the discussion between language, games, and politics, proposed by Waltércio Caldas in the exhibition A natureza dos jogos (The nature of games) (MASP, 1975), especially in the work A origem do futuro (The origin of the future) (1972).
2 Warhol satirized an American compendium published in the 1950s that promised home instructions for learning to dance easily, as in the books Fox Trot Made Easy, Tango Made Easy, and The Easy Way to Good Dancing, published by Dance Guild, Inc.