Casa de Andar
Uma coisa exposta é uma coisa desprotegida, desabrigada. Sobre ela se depositam olhares e usos que não se pode regular e fiscalizar com absoluto controle. Expor algo é como o avesso de estar em casa, onde conservamos nossos segredos, onde mapeamos as superfícies ordinárias com comodidade. O que acontece, no entanto, quando aproximamos a casa da rua, friccionando o público e o privado, a intimidade e a comunidade? Creio ser essa a provocação que nos coloca esta exposição.
Casa de Andar se refere a uma expressão comumente usada na Bahia, terra natal de Mano Penalva, para denominar casas com mais de um andar, os sobrados. Na Portas Vilaseca, que é originalmente uma casa de vila, o sentido construído pelo artista se reforça, convidando o público a subir as escadas e experimentar certa ambiguidade doméstica. Trata-se de um conjunto de trabalhos que produzem estranhamentos a partir da linguagem da “casa brasileira”, seus repertórios e tradições.
Já na entrada, Orquídea apresenta duas cornucópias que nos recebem como fazem as plantas de proteção, estabelecendo a cerimônia para as visitas. Aqui, os objetos em vidro estão suspensos no ar como duas orelhas que captam os ruídos da rua. Essas flores fazem nossa transição para o interior da casa, onde adentraremos quinas mais íntimas, privativas.
Em seguida, as Ventanas. São muitas as janelas, essas que crumpem o papel de não nos fazer esquecer do mundo, mediando conversas, cheiros, barulhos, namorinhos, e nos fazendo ver a rua, a praça, a feira. “O mundo bate do outro lado da minha porta”, disse Pierre Albert-Birot. Nessa série, estruturas em escala arquitetônica são conjugadas com treliças, palhinhas, peneiras, espelhos e lustres, formando arranjos abstratos de senso construtivo. Há nelas um certo investimento pictórico, presente na relação entre chassi e moldura, nos tons da madeira, e com algo da técnica da velatura, com sobreposição e jogo de transparências, entre o velar e o revelar. Somos levados a pensar na casa colonial no Brasil, com suas portas e janelas com rendas de madeira, basculantes e gelosias, através dos quais as mulheres podiam observar a rua sem serem vistas. São espaços de negociação social e subjetiva, como também são a calçada e a varanda.
Em 1 Quarto, 2 Quartos, 3 Quartos, as quartinhas - objetos presentes nos cultos afro-brasileiros - são aproximadas das moringas de barro, responsáveis por manter a água fresca. Seus nomes nos remetem aos espaços de dormir e repousar e também às proporções matemáticas. O jogo com seus números - 1, 2, 3 - faz um elo entre cheio e vazio, satisfação e preenchimento, o revelado e o misterioso. São jarros que conservam uma quantidade de água que não conseguimos ver, mas podemos imaginar. Já em Kitnet, a ironia de duas quartinhas apertadas pelo suporte de madeira comenta os espaços disputados das moradias urbanas. Nas ventanas e nos quartos, persiste a relação entre a casa e a rua não como oposição fundamental, mas o que revelam de possível conjugação entre o público e o privado, o íntimo e o coletivo. Os materiais transpiram, produzindo passagens entre um lado e outro. Curiosamente, muxarabi significa “local fresco”.
Mas há também de ser uma casa úmida, irrigada. Colônia é um trabalho presente ao longo de todo o nosso percurso, com um conjunto de pequenos pratos e cinzeiros antigos cortados ao meio, que nos lembram cogumelos. Eles se espalham pelas paredes, qualificando a arquitetura com vitalidade própria, que responde a nossa presença como organismo autônomo. É uma casa lubrificada que ultrapassa o compartimento dos seus cômodos. Uma casa que se espraia.
Nas Bailarinas, capas para botijão de gás, galão d'água, liquidificador, puxa-saco, entre outros utensílios, são costuradas formando uma estrutura entre o totem e o traje de baile. Desalienadas de seu primeiro uso, são aqui o prazer do tricô, ofício doméstico por excelência. Somos levados a pensar no caráter ritual e performático presente neste fazer artesanal. Além de qualquer funcionalidade, esses paninhos são exercícios de sofisticação e produção de diária beleza. O mesmo pode ser observado no caso das palhinhas, rendas e treliças. O ornamento ocupa um lugar de cuidado e investimento afetivo.
É com perícia que Penalva constrói objetos que contém em si intimidade e estranheza, trazendo aquilo que há de alheio e arredio para os espaços da comodidade. A centopeia - aqui um corpo coletivo de xícaras - estranha os usos costumeiros do utensílio. No biombo, que usualmente serve para proteger ou ocultar certo espaço da casa, os cacos de vidro produzem a imagem de uma violência íntima, tornando o objeto agressivo e fazendo crer que o risco também pode ser doméstico. Seu nome, Tribeira, faz referência aos telhados das casas coloniais, nesse caso os mais abastados, com acabamento triplo. Fica a ambiguidade de um poder construído através de mecanismos de exclusão por meio de um objeto de forte impacto visual, entre a beleza e a repulsa.
Em todo o conjunto, os objetos agem silenciosamente, como testemunhas dos mais diversos acontecimentos domésticos. E o que faz Mano Penalva com o vocabulário da casa, seu léxico e repertório, é animar seus utensílios, despertá-los da funcionalidade a partir de rearranjos, acúmulos, contrastes, pequenos deslocamentos de sentido. Estamos na passagem entre a casa - dimensão íntima e privada - e a rua - dimensão coletiva, pública e política. É a casa brasileira, mas também a casa íntima de cantos e quinas do desejo. Há que se desconfiar de seu aconchego, estranhar sua privacidade, ver a partir de novas perspectivas.
Mas entre, veja mais um pouco, pode sentar.
Pollyana Quintella, 2019
Pollyana Quintella é curadora-assistente do Museu de Arte do Rio (MAR), pesquisadora independente e cogestora do espaço autônomo A MESA, no Rio de Janeiro. Formou-se em História da Arte pela UFRJ e é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ, com pesquisa sobre o crítico Mário Pedrosa. Atuou na equipe de curadoria da Casa França-Brasil (2016), foi coeditora da revista USINA e colunista do jornal Agulha. Curou exposições em instituições e espaços independentes no Rio de Janeiro e em São Paulo, com especial interesse para a interseção entre poesia e artes visuais. É também colunista da Revista Pessoa.
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Two-story house
Something exposed is something unprotected, vulnerable. It attracts glances and uses that can be neither regulated nor inspected with absolute control. Exposing something is like the opposite of being at home, where we keep our secrets, where we map ordinary surfaces easily. What happens, though, if we bring the house close to the street, causing friction between public and private, between intimacy and community? I believe that this is the provocation posed by this exhibition.
Casa de Andar (Two-story house) refers to an expression that is commonly used in Bahia, the birthplace of Mano Penalva, to refer to houses with more than one story, the so-called 'sobrados', or two-story houses. At Portas Vilaseca, which is originally a village house, the meaning built by the artist is reinforced and invites the public to walk up the stairs and experience a certain household ambiguity. It comprises a set of works that produce strange sensations based on the language of the “Brazilian household”, its repertories and traditions.
Right at the entrance, Orquídea (Orchid) presents two cornucopias that welcome the visitors like protective plants officiating a ceremony for the visitors. Here, glass objects are suspended in the air like two ears that capture the noises coming from the street. These flowers do our transition to the inside of the house, where we enter more intimate, more private corners.
Then, we have Ventanas (Windows). Various windows play the role of not letting us forget about the world, as they mediate talks, smells, noises, romances and make us behold the street, the square, the market. “The world pulse beats beyond my door,” said Pierre Albert-Birot. In this series, sculptures of architectonic scales are mixed with lattices, canes, strainers, mirrors and chandeliers, forming abstract, constructive arrangements. There is something pictorial about them, which is found in the relation between chassis and frame, in the tones of the wood, and with something from the glazing technique, by overlapping and playing with transparencies, with concealing and unveiling. We are invited to think about the Brazilian colonial houses, with their doors and windows featuring timber lacework, louvers and jalousies, through which women could see the streets without being seen. These are spaces for social and subjective negotiation, as much as sidewalks and balconies are.
In 1 Quarto, 2 Quartos, 3 Quartos (1 Fourth, 2 Fourths, 3 Fourths), the amphoras - objects found in African-Brazilian rituals - are placed close to clay jugs, responsible for keeping water fresh. Their names in Portuguese (quarto means both 'room' and 'one fourth') remind to sleeping and relaxing spaces as well as to mathematical proportions. The game with its numbers - 1, 2, 3 - is a link between full and empty, satisfaction and fullness, revealed and mysterious. Such jugs store some amount of water we cannot see, but which we can figure out. Yet in Kitnet, the irony of two amphoras pulled by a wooden support refers to the sought-after spaces of urban households. In both ventanas and quartos, the relation between house and street persists not as a fundamental opposition, but rather as a revelation of a possible connection between public and private, intimate and collective. The materials ‘transpire’, creating passages on one side and the other. Curiously, mashrabiya means “cool place”.
Nevertheless, it should also be a humid, irrigated house. Colônia (Colony) is a work present throughout the visitors' way as a set of small plates and old ashtrays cut in halves that resemble mushrooms. They are scattered on the walls, impregnating architecture with a vitality of its own, responding to our presence as an autonomous organism. It is a lubricated house that goes beyond the dimensions of its rooms. A house that is in expansion.
In Bailarinas (Ballet dancers), covers for gas cylinders, water gallons, blenders, plastic bag holders, among other objects, are sewn together into a structure between a totem and a ball gown. Removed from their primary use, here they become the pleasure of knitting, a quintessentially domestic activity. We are led to reflect on the ritualistic and performing aspect of this handcraft. In addition to any functionality, these little pieces of cloth are an exercise of sophistication and production of daily beauty. The same can be noticed in the canes, lace and lattices. The ornament occupies a place for attention and emotional investment.
Penalva skillfully builds objects that contain both intimacy and strangeness, bringing foreign and elusive elements to spaces of comfort. Centopeia (Centipede) - here a collective body made of cups - repurposes the common uses of the cups. Around the screen, which is usually utilized to protect or hide a certain space in the house, glass cullets form an image of intimate violence that turns it into an aggressive object and makes one believe that the risk could also take place at home. Its name, Tribeira (Outer roof), makes reference to the three-layer roofs of rich colonial houses. Here, the ambiguity of power based on exclusion mechanisms is verified through an object impregnated with a strong visual impact that ranges between beauty and repulsiveness.
Throughout the ensemble, the objects behave in silence, like witnesses of the most diverse domestic events. And Mano Penalva - with the household vocabulary, his lexicon and his repertoire - animates his utensils by bringing them out of their functionality through re-arrangements, accumulations, contrasts, slight sense shifts. We are at the passageway between house - an intimate, private dimension - and street - a collective, public, political dimension. That is the Brazilian house, but also the place where the corners of desire dwells intimately. We should suspect its warmth and its privacy, and see from new perspectives.
But come in, see a bit more, take a seat!
Pollyana Quintella, 2019
Pollyana Quintella is assistant curator at the Rio Art Museum (MAR), freelance researcher and co-manager of the independent art space A MESA, in Rio de Janeiro. She graduated in History of Art from UFRJ and has a Master degree in Contemporary Art and Culture from UERJ, with a research on critic Mário Pedrosa. She worked at the curator team of Casa França-Brasil (2016), as a co-editor of magazine USINA, and a columnist of newspaper Agulha. She has already worked as a curator for exhibitions at independent institutions and art spaces in Rio de Janeiro and São Paulo, with a special interest in interconnecting poetry and visual arts. She is also a columnist in Revista Pessoa.
Mano Penalva (Salvador/BA, 1987) lives and works in São Paulo. He graduated in Social Communication from PUC-RJ, where he also studied Social Sciences with an emphasis on Anthropology. For 6 years he attended free courses at EAV - Parque Lage School of Visual Arts. Currently, he takes part in Massapê Projetos, a platform for art production and art thinking in São Paulo. Mano Penalva's work has its starting point in the study of Material Culture, changes in behavior and the effects of globalization. His output is deliberately non-representative, which allows for materials to set the form and mix together almost spontaneously from their wish to exist in the world. When creating his works, Penalva subverts the value of everyday objects by proposing new esthetic groupings based on the relation of retail sales strategies, his collection experiences and his observation of the field that lies between House and Street. Mano Penalva's works highlight the idea that the exponential proliferation of objects and images is not intended to train either perception or conscience, but rather it insists on having us merged with them.