FORRÓ
Esse ato de nomear a exposição com um gênero musical tão característico da Música Brasileira que une festejo e fé, elabora questões fundamentais da prática artística de Mano Penalva. A materialidade dos trabalhos presentes na exposição e o encontro proposto no espaço expositivo do Museu de Arte de Ribeirão Preto compõem o espaço enquanto música, afeto e dança. Originalmente construído para ser a sede da Sociedade Recreativa da cidade, o espaço que já acolheu reuniões e festas, hoje abriga exposições de arte. Embora esses encontros tenham sido transformados, eles ainda guardam uma possibilidade de dança e também uma coreografia entre arquitetura, arte e o público visitante.
Nesse sentido, o forró afirma essa composição em conjunto, para dançar a dois, como um duplo em conjugção entre corpo e música. As obras presentes na exposição se aproximam por meio desses espelhamentos, tanto através dos próprios trabalhos e suas materialidades, quanto de um espelhamento espacial, uma coreografia expográfica. Convocando-nos a um exercício do olhar, onde os trabalhos se apresentam quase como uma forma de subversão à lógica geométrica construtiva, onde a manualidade é a poesia do material e seu gesto construtivo, que juntos possibilitam um trânsito entre espaços e também entre regiões com suas histórias afetivas. Como o próprio trabalho forró composto por duas desempenadeiras - ferramenta utilizada na construção civil - acopladas uma à outra e deslocadas no sentido da empena. Nessas superfícies que sobram ao gesto, há um espelho, que em certo sentido, ativa um caráter psicanalítico do trabalho nessa relação entre refletir o externo e o outro.
Dentro desse gesto e desse fazer no campo das práticas artísticas de Mano Penalva, aproximo ao fazer da poesia, entre a escolha das palavras e seus sentidos. Como em Carlos Drummond de Andrade em seu poema “Explicação”:
Meu verso é minha consolação.
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de crystal, canequinha de folha de flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.
Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso. E meu verso me agrada. 1.
Essa aproximação que proponho, por meio do encontro entre a experiência e o sentido do fazer, invoca a linguagem e suas possibilidades. Quando falamos de arte, falamos também de uma linguagem elaborada no presente, não pela palavra, mas pelo gesto, que constrói uma forma de simbolizar o mundo.
No trabalho de Mano Penalva, isso pode ser percebido através dos deslocamentos e também desse gesto construtivo. Cabem as práticas artísticas essa formulação, não como tradução, mas como proposição. Como bem coloca o poeta Manoel de Barros em seu livro “O menino do mato”:
Mas o pai apoiava a nossa maneira de desver o mundo
que era a nossa maneira de sair do enfado.
A gente não gostava de explicar as imagens porque
explicar afasta as falas da imaginação.
A gente gostava dos sentidos desarticulados como a
conversa dos passarinhos no chão a comer pedaços de mosca. 2.
Essa capacidade de elaboração do presente e de suas contradições tem na arte um campo de fabulação e exploração desses “sentidos desarticulados”, como escreve o poeta Manoel de Barros, e que podem ser utilizadas como ferramentas perceptivas na exposição.
Dessa forma, regador é uma escultura que aciona essa lógica construtiva e seu deslocamento funcional, articulando um ciclo formal que quebra sua função original e explora sua materialidade. A imobilidade física da escultura é superada pela ação do tempo, composta por pó de ferro e resina, materiais que são sujeitos ao tempo e se transformarão com o passar dos dias.
A repetição e o contínuo de formas geométricas presentes nos trabalhos da exposição, carregam em si uma dinâmica própria, com modos de movimentos sujeitos ao tempo, o que me faz aproximar da ideia de Geometria Sensível, proposta por Roberto Pontual na exposição “Arte Agora III América Latina: Geometria Sensível” que aconteceu em 1978, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Reunindo trabalhos de artistas da América Latina, a exposição ofereceu uma alternativa mais orgânica para analisar a produção de artistas ligados ao caráter construtivo e que desviavam do concretismo europeu, propondo outras possibilidades de geometria. Encontramos, mais do que uma geometria simbólica, uma construção afetiva.
Nesse sentido Frederico Morais afirma: “O gesto construtivo é um gesto fundador de mundos. Gesto primeiro, aberto ao futuro.” 3. O crítico entende a geometria como possibilidade de linguagem artística no campo construtivo e como gesto de um desejo utópico. As montagens e articulações feitas por Mano em Alpendre, Bisel e outros trabalhos presentes na exposição, instauram esse gesto construtivo como fundador de mundos, a arte no campo simbólico e utópico da experiência sensível.
Omar Porto
Agosto de 2024
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1. ANDRADE, Carlos Drummond. Alguma Poesia. In.: Alguma poesia - O livro em seu tempo. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2010.p.255.
2. BARROS, Manoel. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010. p.451.
3. MORAIS, Frederico. A vocação construtiva da Arte Latino-Americana (Mas o caos permanece). In.: Arte Agora III / América Latina: Geometria Sensível. Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, p.25.