Mas o que se pode fazer? (Wagner Nardy, Caraiva – Bahia, 2015)

toda vez que ele chegava a ***, a primeira coisa que sua mãe fazia era levá-lo ao terraço (ele, com uma saudade indolente, distraída e logo inapetente, teria ido embora sem subir ate lá): Agora vou mostrar as novidades – e indicava as novas construções – Ali os Sampieri estão levantando mais um andar, aquele lá é o prédio novo de um pessoal de Novara e as freiras, até as freiras – lembra o jardim com bambus que a gente via embaixo? – agora veja o buraco que elas fizeram, quem sabe quantos andares vão querer erguer com essas fundações! E a araucária da vila Van Moen, a mais linda da Riviera: agora a empresa Baudino comprou toda a área e uma árvore que devia ter sido tombada pela prefeitura virou madeira de lenha; aliás, seria impossível transplantá-la, quem sabe até onde iam as raízes. Agora venha ver desse lado: a gente já não tinha vista para o nascente, mas veja o novo telhado que apareceu; pois bem, agora o sol da manha chega meia hora depois.”

Italo Calvino, La especulazione edilizia, 1957

 

“Rapunzel então deixava cair fora da janela a sua comprida cabeleira, e a bruxa subia se agarrando a ela como se fosse uma corda”

Jacob e Wilhelm Grimm, Rapunzel, 1812

A pergunta título deste texto se refere a fala do protagonista da obra “A especulação imobiliária” de Italo Calvino, Quinto Anfonsi, ao observar cinicamente a transformação da paisagem de sua bucólica terra natal, na Riviera Italiana, em uma cidade moderna.

É também esta pergunta que permitira introduzir o trabalho do artista Mano Penalva, nascido na Bahia mas residente em São Paulo onde concentra sua produção recente.

O trabalho do artista se divide em grandes blocos, que representam linhas gerais de pensamento desdobráveis em várias séries, formando uma espécie de quebra-cabeça.

Como um típico personagem Calvinista, o artista sempre inicia suas práticas a partir de longas caminhadas pela cidade (herança de quando trabalhava como pesquisador de comportamento) onde permite-se sair de sua zona de conforto (mediações de sua casa-atelier) e descobrir novas realidades.

Nestes trajetos o artista observa a CASA, como espaço íntimo, sagrado e supremo; e a RUA, como movimento amplo, profano e transitório.

A partir dessa observação retira toda a base para sua criação artística, que lida com temas filosóficos, sociais, urbanísticos, sacros mas sobretudo antropológicos.

Os materiais escolhidos pelo artista também partem desta lógica e comumente são retirados de caçambas e dejetos de construções formando assim um basilar tronco ideológico que norteará todo sua recente produção: Carregamentos Moveis.

Nessa macro série (tipo de gênero) subdividida em vários movimentos artísticos fragmentados (espécies), o artista busca entre esses materiais imprecisos estabelecer uma conexão plástica estimulando um diálogo dos inconciliáveis.

É aí, que nos parece apropriada a relação de sua obra com o texto de Calvino, A especulação Imobiliária, nos atendo aqui, não a seus aspectos econômicos e financeiros, mas, aos aspectos políticos e urbanísticos.

O livro de Italo, escrito nos anos 50 revela a transformação da paisagem de sua terra natal para dar origem a uma sociedade pós moderna na qual a derrocada do pensamento intelectual/ideológico é iminente.

Como Mano, Quinto caminha vagamente pela cidade observando as paisagens alteradas, interessando neste processo, nunca um fim específico determinado, mas o ato em si mesmo.

Caminhar.

O tempo que avança.

Caminhar.

Avante.

Sempre.

O que difere a rotina do artista daquela vivida pelo personagem na história é o fato de que, diferente do protagonista literário, ele não é um empreendedor de si mesmo, mas um elemento sensível as circunstâncias antropológicas da existência em comunidade. Não existe a nostalgia dos lugares e ideologias passados mas a posse do tempo presente. Tampouco a premissa deatitudes subjetivas e individuais dando lugar aideia de troca, pontes,  vias de acesso.

No fim, interessa mesmo ao artista estabelecer por meio de suas obras uma partilha da fome e não uma auto satisfação garantida como pretendem os personagens de Calvino.

Nos Carregamentos Móveis os materiais de descarte apropriados revelam a identidade comum das construções humanas que se entrelaçam na vida contemporânea através da constante mutação espacial ocorrida pela tensa especulação imobiliária atual e pela implantação de uma sociedade de consumo.

As obras, na maioria das vezes, objetos escultóricos, buscam tratar da questão referente a transformação do espaço-tempo e da identidade cultural política.

muito fechado em si, indiferente ao resto, e áspero era o caráter da velha gente de ***. Não resistiu porem à pressão fervilhante de outra gente italiana em seu entorno e logo se abastardou. A cidade tinha enriquecido, mas já não sabia o prazer que dava aos velhos o ganho parco do lagar ou da loja, ou os ousados divertimentos da caça aos caçadores, como eram todos antigamente, gente do campo, pequenos proprietários mesmo aqueles poucos que tinham relações com o mar e o porto. Agora, porém, eram assediados pelo modo turístico de gozar a vida, modo milanês e provisório, ali na estreita via Aurélia abarrotada de carros conversíveis e trailers, e eles ali no meio o tempo todo, falsos turistas, ou dependentes congênitos e descorteses da “indústria hoteleira”. No entanto, sob formas novas, a operosa e avra tradição rural ainda persistia nas tenazes dinastias de floricultores, que em anos de esforço familiar acumulavam lentas fortunas; no alarido mercantil do grupo madrugador dos floristas. Todos os nativos gozavam ou propalavam direitos de privilegiados; e o vazio social que se formava na base atraia, das populosas jazidas de mão de obra da ponta extrema da Italia, as multidões de sombrios calabreses, malvistos, mas com salários convenientes, de modo que agora uma barreira quase racial separava a burguesia das classes subalternas, como no Mississipi, mas não impedia que alguns dos imigrados tentassem bruscas reviravoltas de fortuna, subindo a dignidade de proprietáriosou arrendatáriose assim também insinuando também eles , aqueles instáveis privilégios.”

Italo Calvino, La especulazione edilizia, 1957

Por certo, o interesse do trabalho de Mano esta na derrocada de paradigmas, nos elementos descartáveis, nos vestígios dos sistemas que se insinuam revelados mas misteriosamente nunca o serão explicitamente.

Assim como no livro de Calvino, sua obra fala das relações de poder e como essas relações estão manifestadas na paisagem urbana da CASA e da RUA. Em como esse jogo de poder social e antropológico se exterioriza e silencia cotidianamente. Em como é capaz de agir sobre nós ainda que, não nos sintamos oprimidos por esse “bem-estar sacrossantamente baseado na produção industrial, mas sempre disforme e incoerente”

Deflagrado está então, um processo de dominação que não é só da classe burguesa sobre as demais, mas sobresi própria.

O pensamento de elite domina enquanto é dominado.

A obra de Calvino deixa claro que a modernidade esta calcada no conceito de liberdade Foucaultiano, onde o sujeito e as suas próprias condições realiza seus interesses recorrendo a dinâmica de sua própria racionalidade.

Já a obra de Mano nos leva ao confronto de tal experiência.

Os Carregamentos Móveis nos revelam um sistema social segregador, fascista e padronizado.

Em suas andanças o artista atentamente observou que os dejetos/objetos das caçambas demonstram características comuns a coletividade ali agrupada.

Isto, fosse derrocada ou reconstrução. Fosse Zona Norte ou Zona Sul.

Esta uniformização implica, portanto, numa mitigação dessa mesma liberdade “conquistada” outrora e coloca em questão o paradigma de liberdade moderna amplamente defendido por Foucault em seu curso no College du France (1978/1979).

Tal reflexão aponta claramente outras preocupações do trabalho com demais questões humanas, revelando variadas facetas de sua problemática como aquela prementemente ligada ao sentimento de pertencimento.

Mano provoca tal assunto a partir de um alinhamento amigável entre técnicas handmade e os materiais Ready Made dos quais comumente se apropria. O artista recorre constantemente ao trabalho de associações de artesãs tecelãs e incorpora ele mesmo tais peças a seus trabalhos realizando conexões seja por meio da colagem, costura e outras técnicas.

Parece que o artista quer mesmo polarizar a CASA e a RUA, a falta de relação com a terra, o desprendimento, os segmentos, a fragmentação social, por fim a estratificação, como tão bem observa Calvino:

alistado nessa multidão de civis, empreendedora, adultera, satisfeita, cordial, filisteia, familiar, conservada, devoradora de sorvete, todos de calção e camiseta, mulheres, homens, crianças, adolescentes na absoluta paridade das idades e dos sexos, nesse rio pingue e superficial sobre a acidentada realidade italiana”.

Ou ainda no nosso próprio cancioneiro popular: “o Brasil não conhece o Brasil”.

Indicando os abismos espaciais e humanos de nosso tempo, Mano espera estabelecer novas formas de encontro através de dinâmicas artísticas inovadorascomo, com o frescor de sua recentíssima produção: o trabalho Rapunzel.

Apropriando-se desta vez dos contos de fada, Mano quer nos contar suas fábulas antropológicas, que embora presentes nos Carregamentos Móveis agora são apresentadas de uma forma nova, quase lúdica.

As fábulas representam a expressão de um gênero literário que eclodiu após a ascenção da burguesia, da Revolução Industrial e Francesa, cuja reviravolta na mentalidade científica culminou na valorização da cultura popular, ou folclore, no apagar das luzes do século XVIII.

As fábulas ordinariamente buscam fazer uma crítica aos costumes e aos vícios locais e nacionais e também, as características universais da natureza.

Mais uma vez as questões cordiais entre o PRIVADO e o PÚBLICO estão presentes, linha esta que age como um fio condutor de toda a obra do artista.

No conto original, Rapunzel, dos irmãos Grimm, antes de tudo urge o tema da paixão. Porem existe considerável desequilíbrio neste sentimento e a paixão desmedida do príncipe por sua amada, o torna cego de modo que durante muito tempo peregrina em busca do antídoto que quebraria o feitiço de sua maldição.

O trabalho de Mano parece sim, nos trazer um rastro de luz, uma nova visão de modo a quebrar essa espécie de cegueira cultural que paira como uma maldição nos tempos atuais.

Cegueira esta que tem desenvolvido com frequência o aparecimento de grupos direitistas, neo nazistas, separatistas, jihadistas, racistas, machistas, feministas, sexistas e tantos outros que nos tem deixado acuado em nosso próprio tempo.

Sabido é que, diferente da historia com final feliz é preciso estabelecer um limite a toda paixão.

Otavio Paz escreveu: toda paixão tem de ser lúcida”.

As luzes de Mano brilhando parcas na escuridão de objetos em desuso parecem nos fazer enxergar exatamente tal realidade.

Por ocasião do tema fabular na obra de Mano Penalva, insta salientar, fato pessoal sobre o artista mas que guarda toda relevância na sua produção desde o início: seu particular interesse pelo paisagismo e composições florais.

O artista sempre nutriu carinho especial pela relação entre os jardins e o espaço externo, tornando-se o primeiro um elemento transformador do ultimo.

Os jardins são espaços de manifestação do poder do intelecto sobre a natureza, são símbolos de controle desde a Arcadia, mas tal realinhamento da natureza no espaço urbano define novos sentidos para a paisagem na qual se insere não deixando dúvida de que ali o ambiente natural é ingovernável.

Além disso, Mano tem realizado grandes exercícios pictóricos e de composição com flores, onde traz para o micro sistema de um arranjo decorativo as mesmas preocupações de seu trabalho institucional.

Por certo que as fabulas são narrativas onde os jardins representam espaços onipresentes e importantes para o desenrolar de muitas questões.

Na serie Rapunzel, uma nova pratica ainda nos é apresentada. Dessa vez o artista interfere diretamente nos circuitos de transito de bens e riquezas.

Diferentemente dos circuitos ideológicos de Cildo Meireles, Mano Penalva se apropriado sistema de circulação de insumos básicos porém o artista não insereapenas seu trabalho no tramite destas engrenagens como comumente pratica Cildo, mas, fiel a sua prática de andarilho moderno, privilegia o encontro com objetos constituidores destes circuitos e então os retira de sua rota original estabelecendo-lhes nova trajetória.

Como na historia de Rapunzel, Mano se parece com o príncipe que vaga pela floresta em busca de algo, que nem ele próprio parece saber muito bem o que é a principio, e só o sente encontrar quando vislumbra poder libertar Rapunzel de sua torre. O sentido do encontro só ocorre com o próprio encontro.

Assim, na nesta série que faz parte Rapunzel, o artista se apropria de diversos sacos de transporte de insumo básicos recolhidos mundo afora e, colocando um dentro do outro, cria objetos instigantes componentesdeste novo corpo de trabalhos.

Os sacos não possuem o conteúdo que por utilidade deveriam trazer mas outros sacos vazios da mesma natureza.

Isto é, não há a satisfação plena de suas capacidades. O circuito vira um fim em si mesmo e esse é um aspecto danoso de uma sociedade tecnocrata; parece nos querer advertir o artista.

A obra reflete a incapacidade dos sistemas em satisfazer seus desejos.

Como Rapunzel, os circuitos estão aprisionados em si mesmos urgindo a necessidade do destacamento de seus elementos de sua circulação oficial para a discussão coletiva do assunto como tanto gosta o artista de viabilizar através de seu trabalho.

Calcada no gênero literário, esta série aponta para um novo interesse de Mano Penalva: a linguagem.

Desde a série Reflexíveis, cujos trabalhos são feitos com materiais vulgares de sinalizadores fluorescentes de tráfego e pessoas sobre chassi de tela, tal direcionamento linguístico estava presente.

Agora, a tipografia assume uma importância artística crucial nos novos trabalhos, pois estabelece campos de reconhecimento ainda mais ampliados sobre todo o conjunto da obra.

Como em toda prática de Mano tal aproximação, entre a linguagem e obra, não se dá de maneira friamente intencional mas quase fortuita, quase mágica.

É como se as palavras e frases acaso formadas durante a criação dos trabalhos revelassem a alma dos materiais envolvidos na produção.

No fundo é sempre forte no artista os aspectos da cultura brasileira fundamentais, incidentais, incorporados e até mesmo estranhos.

Neste texto nos ateremos ao aspecto da linguagem como manifestação cultural.

É o que interessa ao artista; a partir da vivência comtais materiais busca desvendar uma oralidade que permita ao público estabelecer suas próprias narrativas através de uma leitura cada vez mais aberta e cada vez mais envolvente.

Alem disso, a escrita, a tipologia, a sintaxe usada por Mano participa de uma experiência estética agindo positivamente no campo pictórico de seu trabalho e ativando memórias, sentimentos, reflexão e crítica.

Traz também ao trabalho um aspecto tátil interessante que reaproxima do entendimento popular os objetos agora institucionalizados.

E é através das tranças que Rapunzel se liga com o mundo novamente, são elas portanto elos de conexão entre o interior e o exterior, o íntimo e o público, a galeria e o espaço ao redor, a paisagem.

São como as Teresas de Tunga, que permitem o acesso mas também violam os espaços clandestinamente.

São vias de acesso que permitem cruzar as distâncias entre os conceitos e reflexões aqui levantados, trazendo-os para o campo ordinário da vida cotidiana. Das pessoas. Da arte.

Através desta serie mais nova, voltamos aos diálogos cordiais do início deste texto numa espécie de fluxo sincero, secreto, que perpassa toda a obra do artista baiano.

E embora, o próprio ato de construir incorpore, segundo Calvino, uma imposição natural a ideia de oposição geral, ao tempo atual que sintetiza esta mimetização do espírito dos próprios tempos, Mano parece contar uma fábula inversa, baseada nas derrocadas, nas demolições mas não menos lúdica, não menos poética, não menos pungente.

Pois que parece clamar contra a própria arte legitimamente constituída:

– Desce tuas tranças!

– Desce tuas trancas!

“a mãe estava no jardim. As madressilvas exalavam seu perfume. Os agriões eram uma mancha colorida e bem viva. Se os olhos não se voltassem para o alto, onde de todos os lados surgiam janelas dos prédios, o jardim era sempre o jardim. A mãe circulava de canteiro em canteiro, cortando os ramos secos, conferindo se o jardineiro havia regado toda a área. Uma lesma subia por uma folha aguda de íris: ela a destacou e a jogou na terra. Um estouro de vozes a fez erguer a cabeça: no alto da construção estavam passando o betume no terraço. A mãe pensou que era mais bonito quando faziam as casas com tetos de telha e, quando terminavam o telhado, metiam em cima a bandeira. – Meninos! Meninos! – gritou para as janelas da sala de jantar. – Terminaram o teto”.

Italo Calvino, LA especulazione edilizia, 1957

– Desce tuas tranças!