Casa Matilha e o Corpo Palafita (Tarcisio Almeida)

“Ei, é uma ideia, mais uma, talvez à golpes de mutilações, eu quase chegaria, daqui a uma quinzena de gerações de homens, a me figurar entre os passantes” (Beckett)

Começo com o silêncio. Todo lugar produz silêncio. Até mesmo no mais absorto calor que o barulho pode produzir há silêncio. Ou melhor, silêncios. Conseguem ouvir? Digo de novo. Silêncios. 

Sigamos.

Alguns pisam de quadros em quadros. Por vezes, alternando entre os pretos e os brancos. Outros caminham tortuosamente. Entregam-se a tortuosidade da passada, ao puro acaso do inconveniente. Há alguns, no entanto, que optam pela pisada do tipo poça... Respingam de lama o caminho. Deixam contaminar-se. Calcanhar, pernas, corpo. Tudo aponta para uma contaminação de um lugar externo a quem caminha. Algumas gotas borram a barra da calça, imprimem vestígios impossíveis de serem limpos nas solas. Assolam o solo de vestígios. Verte-se em gotas as pegadas antes tão fortemente demarcadas. Nem escolha, nem acaso.  Apenas passos. O caminho é um grande conjunto de gotas... Elas salpicam de flores o que antes era solo seguro. Os passos-gotas nos pés-gotas de um corpo-gotas intuem um novo tipo de arte: a de viver pingando.

Silêncio.

Todo silêncio provem de um intervalo. Há nesse procedimento o que agora é chão. Romper o silêncio e buscar um novo. O silêncio como brecha. Escape. Reinvenção das passadas que não são nem mais escolhas nem previsão. Apenas o silêncio de uma gota que caminha a espera de uma evaporação no caminho-gotas.

Novas gotas.

Click.

Imaginemos um corpo em movimento.

Da estrutura;

A maré sobe a noite e os portões da teia são fechados. Na alvorada, descem e oferecem passagem a um novo visitante.

Certa vez, convocado a conhecer um conjunto de palafitas sabia que precisava respeitar esses limites de uma casa-natureza. No espaço um odor de peixe. A água escura entrava pelas narinas e não me permitiam um simples enjoar. O corpo do visitante facilmente adaptava-se àquela condição pois ativara-se ávido sem olhar para traz. O brilho da bala cintilava no calibre. Não era uma ameaça. Só não me permitia olhar para traz. Não havia volta sem percorrer todo o fluxo. Sentia o corpo instável. Nunca havia experimentado tal condição. Barulho de TV. Criança chora. Motor acende. Corpos cintilam como estrelas cadentes em terra. Fustigam uma curiosidade. Fustigam como urtiga. Movimentam-se como urtiga. Uma coceira toma conta do meu corpo. Parecem chamas. Deixo os pedaços. Sigo.

Um senhor. O último deles que sabia erguer uma palafita me diz: Palafita não se constrói. Palafita vai se fazendo.

Pistas.

Comecemos pela sua descrição. 

Um conjunto de estacas que sustentam casas construídas sobre a água. Habitação construída sobre estacas. Aquele modo de vida apesar da precariedade me parecia precursor. Ao custo do sal, do suor, da saliva que juntas no mesmo espaço/tempo escorrem desde um copo a imensidão do mar. Tanto faz. A lágrima sempre seca no rosto. Porque então esse modo de vida parece precursor? Não sei. São suposições. Segundo o arquiteto as palafitas não são feitas. No passado. É em um “fazendo” que são configuradas. As estacas quando fincadas na água lamacenta no sobe-desce da maré precisavam ser constantemente mantidas. Num sobe-desce impossível de prever. Numa livre probabilidade do desmoronamento. O seu emaranhado visual parece então apontar para uma solidez vã. O menino ri. É na eminência do desabar que um novo espaço surge. Em teia, articulável, de uma impropriedade quase lúdica faz surgir um complexo sistema de fios tortos que dão base a um conjunto de habitações. A estaca de uma liga-se a outra, criam-se ruas, vielas, avenidas que pulsam sem mais um coração, uma vertical, um norte ou mesmo um horizonte. Aparece nesse lugar uma subversão oblíqua. Um certo balança mais não cai. Um enverga mais não quebra. Pura potência do balançar. Haveria a possibilidade de viver sobre isso? - Sim. Mais uma pergunta aparentemente vã.

É nessa invasão do pouco provável que o fora quase obriga a reinvenção de um sujeito que se movimenta sobre aquele balanço. Há nessa exterioridade um agente maquínico que opera novas maneiras de produzir relações como num livre contínuo que respeita a sua pluralidade inerente. “É conhecer o que passa no interior e considerar o segredo uma interioridade que me escapa... um mundo  diferente do meu. Alinhando os afetos, posso ser um outro através do outro. Torno-me um outro por meio de outra pessoa”. Esse olhar me fazia perceber nas habitação-balanço uma certa espessura que ultrapassava seus fatores condicionantes. Em delírio, penso que somente através de um sistema operatório como este é possível experimentar novos dispositivos capazes de nos catapultar para modos de partilha, movimentos e corpos mais singulares. Na incorporação de sua perspectiva. Num leva e traz sem precedentes. 

Nasce aqui o que chamo de corpo-palafita.

Reinvenção;

Ouço uma música, a letra diz: Mais barato que chiclete no asfalto. Tô precisando de um mundo onde isso toque no fundo dos carros.

Que putaria é essa? Que tira o tesão quando rola putaria perversa.

Escafederam-se. Então porque em resíduo que não degrada meu “eu” precisa se fazer? Longe. Lá longe de mim. Tô comendo água. Tô comendo a estrada. Degradável! Eu comerei você. Não restará mais nada. A grama do campo rareou onde o goleiro sempre estava. Patina num mundo vasto. Vento lufando a camisa ressecada. A regra variou. O legado não faz mais sentido. O fim se parece mais com o princípio. A-GUÁ-LA-VA-MA-RA-VI-LHAAAA! Eu tô vendo que tem mais pipoca do que gente nesse bloco. Essa é a onda. Arrasta. Rareia. Cordeiro, se largue... Agora rasga o abadá. Eu quero ver você rasgar. Ah. Ah. Au. No vai, no vai, no vai que vai.

Escafederam-se. Enviados como lixo atômico, os corpos lodosos reinventam na sua matilha um estado advindo do contágio. Da improbabilidade. Esse devir impessoal parece oportunizar o surgimento de um corpo que balança.

Ruas-matilha;

Em Ditos e Escritos, Vol. III, na conferência intitulada Outros Espaços, Foucault distingue duas espécies de espaços: as utopias e as heterotopias. Segundo ele, ambos são espaços de remissão a todos os demais, entretanto, as utopias são instâncias que não ocupam um lugar real no mundo, enquanto as heterotopias (de heterogeneidade) são extensões onde se justapõem, em um só lugar, vários espaços. Como exemplo, Foucault cita os cemitérios, os barcos, os jardins. Para ele, o jardim é a menor parcela do mundo e é também a totalidade do mundo: “O jardim tradicional dos persas era um espaço sagrado que devia reunir dentro do seu retângulo quatro partes representando as quatro partes do mundo, com um espaço mais sagrado ainda que os outros que era como o umbigo, o centro do mundo em seu meio (é ali que estavam a taça e o jato d'água); e toda a vegetação do jardim devia se repartir nesse espaço, nessa espécie de micro-cosmo. Quanto aos tapetes, eles eram, no início, reproduções de jardins. O jardim é um tapete onde o mundo inteiro vem realizar sua perfeição (...) e o tapete é uma espécie de jardim móvel através do espaço. O jardim é a menor parcela do mundo e é também a totalidade do mundo.” Em Foucault, as heterotopias são lugares em que todos os tempos, todas as épocas, formas e gostos convergem na plasmação de um tempo ele próprio fora do tempo, criando um sistema de abertura e fechamento que no mesmo instante em que se isola, torna-se penetrável. Em suma, as heterotopias criam um espaço de ilusão que denuncia como ainda mais ilusório são os posicionamentos em espaços reais onde a vida é compartimentalizada.  

Retomo a narrativa das palafitas. Através daquela moradia, era criado um espaço invisível por onde transitavam falas, músicas e ruídos, fazendo-me pensar que ao penetrar neste espaço ao mesmo tempo hermético e poroso de que nos fala Michel Foucault seria possível pensar novos modelos de construção do corpo, de cuidados de si... utopias e heterotopias, ainda. Assim como o tapete e o jardim existiam para serem amplamente percorridos e usufruídos, o imbrincado sistema de estacas que formavam as casas, também criava um tipo de território propício ao livre experimento, onde a relação consigo e com o outro era significativa, em constante atualização e troca afectiva

São corpos-palafita que se movem em casas-matilha

Ergue-se cidades-matilha

Zonas de puro devir e contágio. 

Corpo-palafita;

Nessa perspectiva de corpo alguns contornos se mostram importantes pelas suas qualidades imanentes.

1) A capacidade de sustentar-se na vida em balanço; a partir do sobe e desce da maré o espaço terrestre tão acostumado a solidez parece não mais dar conta do seu movimento. Entrega-se a um molejo. Uma ginga que lhe confere qualidades impares de diferenciação. Num bailado impróprio, consegue agora negociar com mais possibilidades os impactos do percurso. 2) O risco do “quase” e a construção eterna; sob essa constante ameaça o corpo que é constituído de pedaços passados e que “quase sempre” desmoronaram ergue-se de maneira topológica. Em muitas direções, adquire novas texturas e volumes a medida que é construído. Como jamais estará pronto seu acabamento em pedaços nunca o satisfaz. Evaporam conceitos de beleza e finitude. O tempo do começo parece ser o mesmo do fim. Tempo e espaço nesse tipo de corpo parecem não fazer sentido organizados em linha, ou mesmo entre pontos. É nesse contínuo de incorporações que sua potencialidade se expõe. 3) Incorporação, transformação em corpo; devorador de possibilidades, jamais o corpo-palafita aparenta unidade. Vive todas as espessuras que suas camadas de tempo lhe trazem, adquirindo assim, certas qualidades plurais e diversas. Observa no presente seus futuros de possibilidades. 4) O fazer-se de muitos e a formação de matilhas; jamais se organiza sozinho. O seu movimento constitutivo não vem de dentro para fora. É do fora que se faz. A partir do outro. Das estacas vizinhas retira o mínimo equilíbrio sem perder de vista que sua sustentação depende e influencia a formação do seu bando. Corpos-palafita formam cidades-matilha. 5) O esgotamento e a sua força de potência; acostumado a balançar, não mais percebe que esse tipo de movimento demanda muito mais empenho que o tradicional (o de andar em linha reta, fixado ao solo). Esgota-se. Suas partes arranham. São fragmentos parafusados que regem sua música. Ainda que esgotado, sem energia em alguns instantes, não perde de vista que é nesse tipo de tessitura que o elemento de sua fraqueza não exprime uma impossibilidade, ao contrário, demarcam a mais pura capacidade de resistir. Seu esgotamento é pura potência de corpo.

Balançar, desmoronar, reerguer, incorporar, multiplicar, esgotar. Cair de novo, balançar mais um pouco, bambolear, rastejar são atos de resistência. Um corpo-palafita é antes de tudo um corpo que resiste. Que permite ser atravessado e que, apesar de sua vida insólita, irresolúvel e aparafusada reinventa-se dando passagem aos fluxos da vida. Permeável, sua configuração somente demarca suas escolhas pela vida. 

São passagens.

Posso até ouvir o assoviar do vento sobre as paredes.

A maré sobe.

Penso que Walter Smetak gostaria dessa ideia.

O cheiro de peixe continua nas mãos.

Do esgotamento;

O Corpo desmoronou-se. Caiu tijolo para todos os lados. O asfalto rachou ao meio e, o corpo estendido no chão ficou colado no chão de cimento quente, -   arrastava-se até chegar a esquina à procura de uma  agua gelada para continuar. Aquele corpo urbano feito de hora marcada e privado de vontade, travava uma relação com tempo. Naquele instante, já não havia mais as pernas,  o corpo confundia-se com a fumaça dos carros. Não cabia mais  salvá-lo, - tratava-se de um corpo que afundava-se, aos poucos, nos rios aterrados pela cidade. Perdia-se do tempo e mistura-se com a lama subterrânea. 

Há um fato que recai sobre nossa época, não se trata de uma teoria ou de uma reflexão, mas um fato, quer dizer, a maneira atual de experimentar a vida : Um corpo que não aguenta mais. ‘‘Os corpos não se formam mais, mas cedem progressivamente a toda sorte de deformações. Eles não conseguem mais ficar em pé nem ser atléticos”.

Algo em nós anda cansado de existir. 

Esses corpos cansados entregam-se a um vida-cimento que pavimenta os fluxos. Perdem-se no jogo das possibilidades. Passam a vida a justificar o cansaço: ora trabalho; ora família; ora casamento; ora as horas que passam nos ônibus e, assim,  permanecem neles a crença de que a vida é uma questão de mudar de lugar as possibilidades. Sem pausa para respiro. Apressam-se para pegar o trem e entram no ritmo veloz, mas, uma hora, o alarme dispara e o corpo vibra novamente. 

 “O que o corpo não aguenta mais (o que é que o corpo não aguenta mais)? [...] A resposta é dupla. Primeiro, ele não aguenta mais aquilo a que o submetemos do exterior, formas que o agem do exterior. Essas formas são, evidentemente, as do adestramento e da disciplina [...] o corpo não aguenta mais também aquilo a que se submete de dentro. Pois estas mesmas formas passam para dentro, se impõem ao dentro desde que se cria um agente para as agir. Neste instante, a relação muda a natureza; ela deixa de questionar a resistência do corpo no adestramento e o transforma em assujeitamento’’.

Aquilo que o corpo não aguenta mais é a condição do Homem-corpo, um corpo fincado na  crueldade  de restringir sua vida a responder aos comandos - as exigências do mundo com seus regimes protocolados injetam dentro do sujeito o valor da obediência- Uma vida sem molejo. Este corpo-Homem, individualizado, assujeitado e portanto, cansado expressa os modos como vivemos na contemporaneidade – perdemos a bravura em troca de algumas migalhas de garantia de vida. Assim, o corpo não aguenta mais o pouco que a vida lhe tem oferecido.

O  corpo-cansado é aquele que não tem vontade de nada. Quer morrer mais falta-lhe força  até para isso. Assim, de forma mais simples, resolve descansar e continuar a viver. Passa a vida a se lamentar  dos dias cansativos.  A vida neste corpo cansado é feito de pó, de cimento, de grandes avenidas, de largos prédios com estruturas bem rígidas que impossibilitam a passagem do fluxo de ar. Esse tormento terrível  repete todos os dias o mesmo mantra: nada mais vale a pena.

Como então dinamitar esse cimento? O que de vivo brota dele?

O esgotamento neste ‘’último nível’ sopra uma ventania capaz de provocar uma reviravolta nesta estrutura regimentada. Um corpo cansado, nos limites da sua exaustão e, descrente de todas as possibilidade, quebra-se e perde sua utilidade, vira um corpo sem uso. Nasce do cansaço um corpo-esgotado. 

Dessa descrença, é possível pensar a virado do esgotamento, quando não reagimos  mais com esperança e desistimos da  salvação. O esgotado é muito mais do que o cansado. “Não é apenas cansaço, não estou mais apenas cansado, apesar da subida”. O cansado não dispõe mais de qualquer possibilidade(subjetiva): não pode, portanto, realizar a minima possibilidade(objetiva). Mas esta última permanece, porque nunca se realiza todo o possível, faz-se, inclusive, nascê-lo, na medida em que se o realiza. O cansado apenas esgotou a realização, enquanto o esgotado, esgota todo o possível. O cansado não pode mais realizar, mas o esgotado não pode mais possibilitar.“Farei o possível, como sempre, não podendo ser de outro modo”.

O esgotado é aquele desinteressado por uma vida cheia de finalidade. Rica em projetos. Isto não quer dizer que o esgotado não tenha uma atividade, que não atravesse mundos. Mas ele faz isso sem uma sentido maior justificado pelas das profundezas do eu.  Atenção. Não se trata de uma passividade, mas de um estado de suspensão de uma vida utilitária.  Lá onde, não existe mais a pergunta - ‘’ou isto ou aquilo’’ cabe falar de uma vida esgotada sem as categorias de existência: derrota/ vitória, fraco/forte, claro/escuro. A vida já não é regida por valor ao coisas, incluído o tudo ou nada como maneira de existência. 

O que acaba cansando na vida são essas muitas possibilidades, essa necessidade de a todo tempo fazer escolhas e excluir outras possibilidades. Uma vida de sim e não. - Isso eu quero, isso agora não me serve, deixa isso para lá, vou por aqui e por lá não me parece agradável - ‘’ Bem diferente é o esgotamento: combina-se o conjunto das variáveis de uma situação, com a condição de renunciar a qualquer ordem de preferência e a qualquer objetivo, a qualquer significação. Não é mais para sair nem para ficar [...] e não se é passivo: está em atividade, mas para nada. Se estava cansado de alguma coisa, mas esgotado de nada’’.

O corpo não aguenta mais é ultimo estado de um homem cansado.

Um Alarme.

Um homem com medo de se perder de Casa. 

Este acontecimento, ecoa nas imagens e  nas palavras  também esgotadas. As palavras não tem um sentido à decifrar-se, estão sempre ao pé da letra. Andam, param, se soltam, correm literais sem interpretações.  Portanto, como fazer as palavras respirarem? Como fazer as imagens andarem? Um mundo esgotado da condição humana não cria mais nada. Tudo cessa, sem cessar. Tudo cai do céu e se afunda na areia movediça. 

Para fabricar  as palavras livres da expressão, de significado e imagens livres de sentido, o homens precisa se livrar de uma vida ocupada de projetos.  Sustentar o balanço das estancas e construir para si uma casa–matilha, onde se possa chegar sem avisar, uma casa sem chave, movimentada pelos acontecimentos. Uma casa em uso e  desuso, entre a forma e força, entre o precário e o abundante, entre orgânico e o inorgânico. Uma casa-matilha que sirva para reinventar novas estratégias de ocupação e experimentação.  Um casa de tudo e de nada.

Vivem em uma tensão extrema, por isso tem um certa fidelidade ao fracasso. Fracasso como ninguém antes ousou fracassar, fecundo insucesso e inadequação ao cansativo projeto de estabelecer novas relações entre aquilo que representa e algo que é representado.  Estar assim, ativamente na superfície  fissurando os tijolos até  virarem areia. Para estes, não se trata de compreender e julgar a vida , ela se faz na borda, no molejo do estremecer das estancas que seguram o corpo palafitas. 

Trata-se de uma lentidão com tônus que  não deve ser confundida com uma entrega submissa para mundo, mas  próxima a uma ativação para o nada - uma palavra que precisa de muitos silêncios. Um silêncio como algo criador que anuncia um novo mundo porvir. Um silêncio a altura da experimentação.

A maré do corpo migrante;

Já faz um ano e tanto, que eu deixei meu Pajeú, com tanta felicidade, vim penar aqui no sul. Ai meu Deus! O que é que eu vou fazer, longe do meu Pajeú...

(...)

A partir dessa experiência do esgotamento e da sua capacidade de resistência - do resistir a partir do fluxo vital do caminhar - aparece o que Lapoujade tenciona quando discute o corpo migrante. Num olhar sobre a conversa de Nietzsche em Deleuze, novas conversas aparecem e ajudam a pensar o que aqui está proposto. Sempre conversas. Trocas. Silogismos. Sincronias. Jogos de palavras. Nesse ensaio, o autor aponta que o corpo migrante é relacionado ao modo como estabelecemos nossos vínculos de conhecimento no mundo. É através desse “conhecer” que o corpo migrante se diferencia daqueles que de forma linear se organizam. Para o homem migrante seu conhecimento com o comum se articula a partir do que ele abandona e daquilo que ainda não adquiriu. Esse movimento o expõe a um conjunto de forças exteriores que redimensionam a expectativa ensimesmada de sujeito redesenhando os personagens de sua trajetória. Qual o segredo? Pergunta Lapoujade. 

O que o faz migrar? 

O poder de sedução de um segredo! Emissão de signos secretos que estão em volta dos segredos. Simpatia por... É o que move alguém a conhecer. CONHECIMENTO MIGRATÓRIO é uma relação afetiva, de simpatia.

Se entendermos o caminhar com essa zona de alinhamentos  afectivos encontramos novas pistas para pensar os movimentos do corpo-palafita que tanto buscamos. Nessas trocas o saber do corpo se dá pelo intermédio do outro. Não se trata, no entanto, de um abandono de si, muito menos de uma fusão com o outro. O corpo-palafita constrói-se a partir do balanço. Num vai-vem violento e apaixonado. Afetação. Uma ordem rítmica. Reencontrar o ritmo de outrem, segue Lapoujade. Nesse aspecto é que se alavancam os modos de produzir agenciamentos nos percursos que o corpo se lança. Aparece, assim, as sinuosidades das ruas-matilha que apontamos antes. Trata-se de um caminhar em ziguezague, percursos deambulantes, que ligam e podem criar novas realidades, novas verdades. A TRANSFORMAÇÃO SEMPRE VEM DO EXTERIOR E NUNCA DO INTERIOR...

Um rascunho de luzes;

Um quem qualquer, de um corpo qualquer se move.

Esgotado. Pura carne.

Força viva de outros.

Uma sujeira lodosa prender-se a parede.

O movente aqui não aparece como matéria simbólica, muito menos representativa. Mas como força. Força viva. A voz da vizinha antes estridente, agora plasma-se em uma nova sinfonia de vida. Emerge desse novo estado um torpor que catapulta sua matéria para uma qualidade de lugar onde todas as dimensões podem existir. Incorpora-se uma perspectiva. Armazena-se possibilidades que não se fundem ao sujeito. Acoplam-se. Os estrangeiros o tornam um múltiplo. Tornam-se possíveis! Não no equilíbrio mas, na tênue probabilidade da diferença.

Salivas. Sulcos. Falésias. Sinto o corpo escorrer. Fio. Córrego. Pedaço de fio. O fio da navalha faz o fio de sangue.

Em cada navalha há sempre um corpo inteiro.

Nada por ele passa mais despercebido. O azul cintila. Uma barraca azul se desfaz.

Tudo parece tão colado em mim que arrancar significa perder um pedaço de pele para se agarrar no outro... Há feridas, mas é de outros que um corpo-palafita se sustenta, na sua pura potência e efeito de criação-diferenciação.

O movente aqui não aparece como matéria simbólica, muito menos representativa. Mas como força. Força viva. São traços de singularidade como preferia chamar Guattari. A voz da vizinha antes estridente, agora plasma-se em uma nova sinfonia de vida. Emerge desse novo estado um torpor que catapulta sua matéria para uma qualidade de lugar onde todas as dimensões podem co-existir. Incorpora-se uma perspectiva. Armazena-se possibilidades que não se fundem ao sujeito. Acoplam-se em estrangeiros o tornando um múltiplo. Tornam-se possíveis! Não no equilíbrio, mas na tênue probabilidade da diferença.

Salivas. Sulcos. Falésias. Sinto o corpo escorrer. Fio. Córrego. Pedaço de fio. O fio da navalha faz o fio de sangue.

Em cada navalha há sempre um corpo inteiro.

Nada por ele passa mais despercebido. O azul cintila.

Tudo parece tão colado em mim que arrancar significa perder um pedaço de pele para se agarrar no outro… Há feridas, mas é de outros
que um corpo-palafita se sustenta, na sua pura potência e efeito de criação-diferenciação.

Penso que no trabalho de Mano Penalva essa qualidade de pele e movimento se atenuam. O corpo do artista parece o tempo inteiro negociar com os corpos-palafita por onde passa. Há nesse empenho um constante exercício em expor-se a essas forças do fora. Nesse caso, muito pouco interessa uma perspectiva etnográfica da caminhada, muito menos o troar afoito de um bandeirante que edificaria apenas linguagens, formas e representações. Nesse aspecto me parece oportuno problematizar um tipo exercício conquistado pelo árduo labor em driblar os ditames de um cotidiano centrado do “eu” para catapultar-se a novas dimensões do próprio corpo. Um corpo plasmado com a paisagem. Que enxerga-se como parte integrante de meio e permite-se ao admirável cruzamento que só a improbabilidade dos acontecimentos é capaz de oferecer. Há nesse modo de caminhada apenas uma obrigação: a de entender a vida, ou a arte, como o próprio gesto escultórico do fazer.